Quando ainda mal sabia dizer o nome das cores, ganhou um cobertorzinho amarelo a que apelidou de “Mirelo”. Arrastava-o junto a si para todos os cantos do apartamento. Tão logo o irmãozinho aprendeu a engatinhar, seguia os rastros de Mirelo e, como se lhe fizessem cócegas, punha-se a gargalhar.
Alguns anos depois, ao serem presenteados pelos pais com um pequeno canarinho amarelo, não tiveram dúvidas quanto ao nome.
— Mirelo!
E sem nenhuma maior consideração, foi assim o batizado do bichinho, esse momento doce em que os pequenos apelidam os menores com a vasta gama de afetos que têm.
Em uma fase em que cobertores já não faziam mais cócegas e cumpriam obedientes sua função restrita de aconchego, as duas crianças buscavam brinquedos mais dinâmicos e, por que não, um animalzinho de estimação? Mirelo era a promessa de uma revolução nas brincadeiras dentro do apartamento cor de ocre e nas primeiras semanas as duas crianças ficavam fascinadas ao verem o bichinho comendo alpiste, bebendo água ou pulando de poleiro em poleiro.
Mas, preso em sua gaiola laranja, logo se mostrou tão pouco interativo quanto o cobertorzinho.
— O Mirelo num faz nada! Nem cantar ele canta!
De fato, Mirelo era um canarinho que não cantava. Aos poucos, nem mesmo as refeições do bichinho entretinham os dois. E Mirelo foi ficando cada vez mais silencioso no coração das crianças.
Aos sábados, pai e mãe tiravam a costumeira soneca depois do almoço, deixando as duas crianças brincando no quarto. E foi em uma dessas tardes que o mais novo teve uma ideia:
— E se a gente soltar o Mirelo?
— Mas por que você quer soltar ele? Não gosta dele?
— Pra gente poder brincar com ele, duh! Ele só fica ali parado nessa gaiola. A gente pode fechar a porta e a janela e soltar ele pra brincar.
A menina nem respondeu. Seus olhos começaram a pular e em um salto ela já estava na frente da gaiola, pegando-a do parapeito e rindo. Fechou a janela e, em seguida, abriu a portinhola arregalando os olhos para o passarinho. Nesse meio tempo, o pequeno irmão postou-se ao seu lado e eram quatro olhos vidrados. Mirelo, porém, continuou parado no poleiro mais acima da gaiola, apenas mexendo a cabeça secamente, como quem está pensando.
Se pensava de fato, não chegou a nenhuma conclusão, pois o bichinho manteve-se onde estava, enquanto as duas crianças olhavam ansiosas pela sua fuga plantada. Até que a mais velha impacientou-se e começou a chacoalhar a gaiola:
— Vamos, Mirelo! Você tá livre! Voa!
Ele se desequilibrou e mexeu as asas rapidamente como fazem os passarinhos desengonçados. Mas logo se reestabeleceu no outro poleiro.
Foi a vez do mais novo. Ele enfiou a pequena mão por dentro da portinhola, esticando-a na direção do passarinho. Novamente, Mirelo rebateu as asas, o que fez o menino recuar um pouco a mão. Quando o susto passou, ele foi determinado a pegar o passarinho. Agarrou-o, sentindo o corpo mole e retirou-o da gaiola.
— Coloca ele no chão!
Mirelo mal tocou as patas no chão e começou a caminhar em pequenos pulinhos, mexendo a cabecinha para os dois lados, como se explorasse o local. Dali debaixo, ele via móveis gigantes e pela primeira vez percebeu sua inteireza, sem nenhuma grade partindo-os: uma cama bege, com um colchão encaixado embaixo, do lado, uma cômoda creme com três gavetas e um abajur azulado. Na parede em cima da cômoda, o quadro de um palhaço meio abstrato. Ainda havia um grande armário branco e dois carrinhos azuis de brinquedo, esses sim do tamanho de Mirelo, jogados no chão.
As crianças rapidamente se sentaram ao lado do passarinho, observando atentas sua expedição pelo quarto.
— Ele tá explorando o quarto! Olha só!
— Mirelo, o passarinho explorador!
O enorme quarto não era tão grande assim na perspectiva das crianças. Em pouco tempo entenderam que estava encerrado o reconhecimento do território e apressaram o passarinho para que fizesse algum outro truque.
— Ele podia voar, né?
Mirelo estava próximo de um dos carrinhos. O irmãozinho pegou o brinquedo e mirou-o precisamente. Em seguida, puxou-o para trás, dando-lhe impulso e o soltou, o que fez com que o carrinho disparasse na direção do canário:
— Voa, Mirelo! Pra não ser atropelado!
As duas crianças riam, enquanto o passarinho tomava um susto ao perceber o movimento repentino e, como esperado, abriu suas asas e voou.
— Uau!! O grande explorador Mirelo é perseguido por um carro vilão!
— E com sua super-capa consegue voar e escapar do inimigo!
— Mas será que ele vai conseguir derrotar o carro do mal?!
Pousou meio metro na frente, foi o suficiente para deixar os dois irmãos fascinados e logo os carrinhos passaram a ser os vilões que perseguiam o grande super-herói Mirelo.
Depois daquele dia, todos os sábados as crianças soltavam o passarinho. Criavam os mais variados obstáculos para o “Super Mirelo”. O quarto dos dois virava uma verdadeira cidade, em que o herói amarelo devia voar para escapar dos desafios. E riam do bichinho desengonçado, julgando nos seus movimentos afobados, pura diversão.
Foi nesse tempo que o cobertor da mais velha, já esquecido no fundo de algum armário, fez-se recordar:
— Lembra quando você colocava o cobertor nas costas e corria pelo apartamento como se fosse um super-herói? O Super Mirelo podia ter uma capa também, né?
— Quê? Nem era assim!
— Era como então?
— Eu nunca brinquei com o cobertor.
— Brincou sim! Eu lembro. Você que não lembra!
E a discussão seguiu, até que um dos dois resgatou o cobertor e colocou-o no chão, próximo à janela.
— Pronto, a partir de agora o Super Mirelo vai ter uma base.
E sorriram ao ver que coloriam o quarto de amarelo.
Essa brincadeira jamais enfadava os dois irmãos e se perpetuaria até o fim da infância. Um dia, porém, a mais velha se esqueceu de fechar a janela e, como era ela quem costumava fazer isso, o mais novo também se esqueceu de conferir. Mirelo, pássaro que era, não percebeu a fresta de pronto, ficou desengonçando no quarto como sempre. Mas, em um de seus voos rasantes, fugindo de um enorme dinossauro de pelúcia, percebeu a fresta à direita, pintada de azul e, sem nem pensar duas vezes, desviou o seu voo e foi com tudo em direção ao céu.
Os dois irmãos riram da manobra:
— Você viu isso?!
A risada da mais velha se transformou em horror e ela gritou para o mais novo, que se encontrava ao lado da janela:
— Fecha a janela! Ele vai escapar!
Em um segundo, o menino empurrou com tudo a janela. Em um segundo, Mirelo se encontrava exatamente no meio da fresta.
No chão, o cobertor ganhava tons de vermelho.
Julia Ferrari D. Páteo