Terceiro lugar Concurso de Contos: Fama

O meu nariz estava entupido quando os créditos do filme começaram a subir na tela. Funguei baixinho, tentando não chamar a atenção de ninguém para o fato de que eu, uma mulher na casa dos cinquenta, estava se acabando de chorar depois de ter assistido a uma animação da Pixar que, na minha cabeça, deveria ser um filme leve para crianças. Enquanto esperava as outras pessoas saírem da sala de cinema, puxei o celular da bolsa.

Havia mais de duas mil notificações no Twitter e dezoito ligações perdidas no meu WhatsApp, além de tantas mensagens que eu nem conseguia contar. As ligações perdidas eram todas da mesma pessoa: minha amiga, Clarice.

Recolhi meu lixo do assento e deixei a sala. Lá fora, atravessei a praça de alimentação barulhenta até descer as escadas rolantes do shopping, procurando um lugar mais calmo para ligar de volta para Clarice, mas nem deu tempo: ela me ligou de novo. Sentei um dos banquinhos e atendi com um pouco de receio. O que levaria minha amiga a me ligar tantas vezes?

— Neli do céu! O que foi aquilo que você escreveu na internet? VOCÊ FICOU FAMOSA!

— O quê?! Eu vi que tem umas notificações aqui no celular, mas…

— Você ainda não viu? Como assim você não olhou o celular esse tempo todo?

— Eu tava no cinema, Clarice. Ficou no silencioso.

— MAS COMO?! — Clarice era engraçada quando falava daquele jeito, aumentando o tom, como uma criança espantada, mas naquele momento eu estava surpresa e um tanto apavorada, e não vi graça alguma. — MAS FOI PARAR ATÉ NO G1, MULHER!

— Como?! No jornal?

— Tá no Moments também — ela continuou, empolgada, como se aquilo explicasse alguma coisa. Percebendo minha confusão, afinal, ela me conhecia há trinta anos, Clarice respondeu à minha pergunta silenciosa: — “Moments” é quando um tuíte fica tão comentado que criam uma série explicando tudo sobre ele. Ai, Neli, não é possível que não tenha visto isso ainda.

— Mas eu só comecei a mexer nesse negócio mês passado e foi por sua causa, Clarice, porque eu ainda nem entendi direito pra que serve isso. Por mim ficava só no zap mesmo, não entendo nada de tecnologia, ‘cê sabe.

— Que inveja, começou mês passado e já tá hitando.

— O que é “hitar”?

— Neli, o que importa é que você tem vinte mil curtidas e quinze mil retweets!

— Vinte mil?! Mas eram só dois mil quando vi as notificações. Clarice, do que você tá falando?

— Parece que copiaram e postaram no Facebook também. Estou olhando aqui, muita gente concorda com você, mas parece que alguns estão te cancelando também.

— Minha Nossa Senhora.

— Neli, o que você tá fazendo que ainda não foi olhar?

— Eu não sei mexer no celular quando estou numa ligação, Clarice!

— AI, MEU DEUS, tá bom, eu desligo. Mas me liga depois, tá?!

            Com os dedos trêmulos, acessei meu celular. O que pensei antes serem duas mil notificações na verdade já passavam de vinte mil, quase trinta. Eu nem conseguia ler tudo, mas havia gente dizendo que eu era uma “fada sensata” e outras muito, muito nervosas. Que horror! As pessoas levam as coisas muito a sério na internet. Havia desde mensagens como “ESSA MULHER É UMA GÊNIA” e “Isso é a melhor coisa do mundo, mas vocês não estão prontos pra essa conversa” até “Quem faz isso nem é gente” e coisas horríveis como “sua nojenta escrota”.

Fechei o aplicativo ao ver aquela última mensagem, me sentindo muito mal. As pessoas estavam me encarando agora e eu não sabia se era pela minha cara de assustada ou porque sabiam o que tinha acontecido na internet. Liguei pra Clarice.

— Acabei de ver. Tô com medo.

— Por quê, Neli? Você tá famosa.

— Falaram coisas horríveis…

— Não fica assim, não. As pessoas podem ser cruéis na internet. Mas, quem sabe, com o tanto de seguidor que você ganhou, possa conseguir alguma coisa?

— Conseguir o quê, Clarice? O que eu ganho quando tenho trinta mil curtidas por algo que falei numa rede social na internet?

Clarice ficou alguns minutos em silêncio, o que não era normal da parte dela.

— É, tem razão. Acho que não se ganha nada mesmo. Relaxa, em uma semana todo mundo já esqueceu.

Eu não sabia o que pensar, por isso não falei nada. Só me sentia muito infeliz. Clarice deve ter percebido, porque tentou me animar:

— Eu nunca comi batata frita com doce de leite. Fiquei curiosa. É bom mesmo?

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