Por Maritsa Kantikas
Ave Maria
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco…
* * *
Mariana e a mãe foram abandonadas pelo pai quando ela tinha cinco anos e ainda não conseguia compreender por quê. Por um tempo fez muitas perguntas e sentiu sua falta, mas antes mesmo dos doze, assim como muitas das amiguinhas, já entendia o que lhes havia acontecido.
Ela ainda o viu outras vezes, mas todos os encontros acabavam em lágrimas e mágoa. Aos dezesseis, ela tentava convencer a si mesma e aos outros, com poses ensaiadas e legendas de fotos nas redes sociais, que as provações da vida a tinham feito mais forte e mais autossuficiente.
Sua mãe havia acumulado rugas e cabelos brancos, que constrastavam com a figura sempre bem apessoada, sorridente e jovial do pai, e essa decadência física e emocional que ela não sabia bem como nomear lhe enchia aos poucos de uma raiva amarga e profunda.
Quando conheceu Jonatas até tentou resistir; a mãe lhe dizia que homem não prestava pra mais nada além de estorvar, e disso ela bem sabia. Mas ele parecia ser totalmente o contrário do pai, e lhe dava esperanças de que podia haver, até pra ela, amor sincero e algum futuro feliz.
Em menos de um ano de relacionamento, o rapaz começou a dar indícios de ciúme doentio. Ele dizia que era porque lhe gostava demais, e ela, com sua autoestima ainda e sempre baixa, suportava as palavras duras das cada vez mais frequentes discussões, porque realmente achava que aquilo era uma forma de afeto. Ainda que não dissesse com todas as palavras, acreditava que aquilo era mesmo o que merecia, e o melhor que poderia querer.
Naquela noite de quarta, após vê-la na rua, conversando com um coroa bem vestido e risonho, ele agiu rapidamente: foi até o carro, pegou sua arma embaixo do banco do motorista, e a matou com três tiros. Pescoço. Cabeça. Abdômen. Nessa ordem.
O pai de Mariana pagou o enterro. A mãe agradeceu, humilhada; naquele momento não teria condições de lhe pagar um caixão digno.
Mas fez questão que fosse branco.
… bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus…
* * *
Renata estava grávida, e a barriga de sete meses era bem evidente em seu corpo pequeno e magro. Quando voltava do trabalho, já de noite, sempre havia alguém no ônibus que lhe cedia o assento. Ela agradecia, já sem pudor, porque sentia muitas dores nas costas e nos pés.
O cara da tatuagem borrada sempre dava um jeito de ficar por perto, e isso a incomodava. E passou a incomodar mais ainda quando notou que ele começou a descer no mesmo ponto que o dela ― no qual, até então, descia sozinha. Achava coincidência demais que ele seguisse pelas mesmas ruelas apertadas, então sempre pegava o celular e fingia estar falando com alguém.
Naquele dia o celular havia sido furtado no serviço, e ela maldizia a própria sorte enquanto olhava ao redor, em busca de sinais de vida dentro das casas e do comércio.
Ele puxou papo; ela apressou o passo.
Era quarta, dia de final de campeonato, e da rua vazia ela escutava palavrões pelos lances perdidos, e narradores ansiando por um pênalti. Já perto do portão de casa, além do papo, ele puxou seu braço.
Ela implorou, passando as mãos no ventre, desesperadamente. Em choque, não conseguia gritar mais alto do que o som que ecoava: “gooooool!!!…”.
Com um canivete em seu pescoço, que ameaçava enfiar em sua barriga se ela não fosse “boazinha”, ele a violentou, atrás de uma kombi estacionada em um bequinho do bairro. Mesmo quando voltou a pegar o ônibus, já processando o trauma, ela não o viu mais.
Naquela noite, sem a calcinha, com o rosto borrado e um tremor incontrolável, ela chegou em casa com a bolsa estourada.
Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós pecadores,…
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Carolina era linda.
Era negra, alta, e há dois anos havia assumido os cachos. Pequenos e delicados, envolviam sua cabeça como uma coroa ― um adorno perfeito para sua elegância e altivez. Hoje em dia era curvilínea, e isso provavelmente era uma resposta involuntária aos dias de modelo que quase a levaram a um distúrbio alimentar.
Mas ela era muito mais do que linda. Formada em direito pela federal do estado, pouco a pouco e luta a luta buscava provar para o chefe que merecia ter o sobrenome no letreiro da rua, na frente do escritório. “Já vai colocando no orçamento”, ela dizia, com confiança e uma dose de ousadia, a cada caso fechado com êxito. Carolina sabia do seu valor na firma, e o chefe sempre lhe garantia que o objetivo estava mais próximo do que ela imaginava.
Ainda que não gostasse de seu modus operandi, o qual frequentemente consistia em criar intrigas que confundiam adversários, ela reconhecia seus resultados ― por mais que tivesse decidido cedo que nunca se sujeitaria a agir assim. “Mentir é pecado, e por isso eu não minto”, ele afirmava, aos risos, sempre que seus esquemas davam certo, e ela fazia força para esconder o desprezo.
Tinha por costume ficar até tarde no local de trabalho; em parte gostava, porque, idealista e ambiciosa, amava o que fazia, e as noites solitárias e calmas lhe ajudavam a pensar melhor. Mas achava (e sabia) que precisava trabalhar em dobro, pra se provar capaz. Era mulher. Jovem. Bonita. Negra. Os colegas? Brancos, ricos, bem nascidos; homens. As aulas de história do Brasil e a militância dos tempos de faculdade já tinham lhe mostrado o que havia acontecido com suas irmãs antes dela, e ela sentia que estava também sob sua responsabilidade batalhar contra aquilo.
Era uma quarta quando o chefe voltou, já tarde, ao escritório. Ela sabia que ele estava mentindo ao dizer que havia esquecido algo urgente; ele dissimulava mal suas intenções, e ela se perguntava se tal traço não era paradoxal demais pra tanto sucesso na carreira.
O homem foi até sua sala, e sentou em sua mesa. Autoritário; superior. Começou com um papo aleatório, elogioso, que rapidamente se tornou desconfortável e predatório. Carolina pensava em desculpas pra se livrar da situação, mas sabia que não havia maneira fácil de sair dali. Ela tinha consciência de que ele via o medo em seus olhos, e como isso devia tornar, pra ele, a situação ainda mais interessante.
Pegajoso e rastejante, em voz baixa, quase sussurrada:
― Calma… eu não te disse que teu objetivo estava bem próximo? Falta muito pouco pro seu nome estar naquele letreiro…
Quando fez menção de correr, a mão do homem já estava na maçaneta da porta. Com uma gargalhada ele lhe disse:
― Olha, olha, Carolina… mentir é pecado!…
…agora e na hora da nossa morte. Amém.
* * *
Todas as noites Dona Lúcia rezava uma Ave Maria com a filha, antes que ela saísse pro trabalho. A moça era vigia de uma loja de departamentos, e nenhuma das duas gostava daquele turno.
No entanto, elas bem sabiam dos boletos que se acumulavam (não pagos) embaixo da fruteira da mesa da cozinha.
― Mãe do céu!, tenho que ir, que já tô no horário. Que dia mesmo que é hoje?!
― Acho que é quarta… Vai com Deus, fia.