Por Joyce Finato Pires
Ele me disse que o difícil seria começar. Depois que você começa, fica melhor, foram suas palavras. Não sei se fica melhor, mas os dedos ainda não pressionam as teclas com tanta rapidez. Queria que as palavras estivessem fluindo, do jeito que acontece quando se está numa conversa gostosa com alguém. Você não percebe o tempo passar. Só risadas e sorrisos.
Eu tenho uma ideia. Falar dessa ideia, ou da pessoa que essa ideia me remete é muitas vezes falar de um ponto de interrogação.
Sinto um bloqueio em rememorar as lembranças que tenho dela. Tudo se mistura, passado e presente. Será que é dessa mesma maneira que ela se recorda de mim?
Sei um pouco da sua vida apenas porque faço companhia a ela vez ou outra. Quando isso acontece, encho-a de perguntas cujas respostas nunca saberei a verdade. Muitas vezes ela se esquece quem eu sou e o que estou fazendo em sua casa. Nessas horas pego em sua mão artrítica, cujos dedos se abrem com dificuldade pra algemá-los nos meus, e digo sou sua neta, a que a senhora mais gosta. Ah, vá vá, é a expressão corrente, não acho não. Instantes depois olha pra mim novamente e diz, é verdade, eu esqueci.
Minha avó não é de falar muito. As vezes, quando fala, não parece dizer nada com nada. Conversa com o ar, com as paredes, com alguém que há muito tempo já se foi. Noutras vezes se torna oráculo. Deusa enlouquecida e solitária, predizendo o passado, esquecida pelo tempo. Talvez tenha perdido a stultifera navis, enquanto se encontrava nos olhos bonitos do meu avô. Vai saber. Talvez tenha apenas adiado a viagem e só agora ela se sinta apta para seguir adiante, como uma loba do mar, navegando as perigosas águas da lucidez – mesmo sabendo do inevitável naufrágio. Gosto de pensar nela como uma exploradora no comando de um navio desgovernado, rumo ao encontro de águas profundas e seres fantásticos que lhe sopram dizeres humanamente impronunciáveis aos ouvidos.
Por vezes, me pego imaginando o tipo de sinapses que os neurônios precisam fazer para que uma pessoa possa se lembrar de feições, risos e vozes. Somos tão complexos e, ao mesmo tempo, uma pequena falha pode colapsar todo o funcionamento de uma máquina extraordinária.
Ah, vó, se a senhora soubesse o quanto eu gostaria que me contasse um pouco mais da sua vida… Se pudesse, a senhora me daria permissão pra ver o que tem aí dentro, nem que seja por um momento ou dois?
De vez em quando, é possível perceber uma leve melhora nas repetições. Há dias bons e dias ruins, diz meu avô, mas mais dias ruins. Como deve ser difícil ter que ficar repetindo e repetindo a mesma coisa.
Aos sábados eles vão à igreja – prática comum em cidades pequenas. Mas nesse sábado eles não vão, deixaram pro domingo. Em dado momento, o relógio de corda deu três badaladas. Ela ouviu. Era hora de tomar banho e ir à missa. Vó, mas vocês não vão à missa hoje, só amanhã. Ah, é verdade. Nem um minuto passou e ela olha pro relógio novamente. Preciso separar minha roupa de ir na missa. Mas vó, missa só amanhã. É aí que meu avô chispa da casa. Ele sabia que ela iria começar a dar trabalho. Mudo de assunto pra ver se o intervalo das repetições aumenta mas, mesmo que eu converse sobre outra coisa, ela interrompe a conversa pra dizer que precisa se banhar e ir na missa. Fica arisca. Por fim, dou espaço pra ela tomar banho e se aprontar, mesmo que não fosse de fato à missa. Também não gosto de ser contrariada.
Eu nunca soube dizer a cor exata dos olhos de minha avó. Pra mim, são um amontoado do passado. Eles mudaram muito, pelo que os filhos dela me falam. É sempre uma aventura olhar pr’aquele par de olhos de cor meio acinzentados. Eles se perdem, frequentemente, quando percorrem a casa que ela diz, de maneira enfática, não ser dela.
Das inúmeras vezes que presenciei as lembranças se dissolverem nas águas turvas da sua cabeça, a pior foi quando a minha avó, matrona alemã, não reconheceu sua própria filha, minha mãe. Pude sentir as lágrimas se acumulando e se agitando nos olhos dela. Chorar também é uma forma de lembrança, resquício de memória que só a umidade dos olhos traz de volta. Minha avó deve estar em algum lugar lá dentro, inacessível na maior parte do tempo. Lenta e inexoravelmente, as lembranças vão se apagando. Será que se apaga tudo assim, igual a quando eu esqueço a carteira em algum lugar da casa? Não pode ser. Dizem que o laço entre mãe e filho é inquebrável. Quem disse isso não teve um ente amado com Alzheimer, certeza. Aposto minha memória que não.
Quando estamos juntas gosto de ocupar o tempo dela. Não podemos sair por aí batendo perna, pois ela já não tem a mesma vitalidade que tinha quando cuidava de 7 netos pestes. Normalmente, sentamos ao redor da mesa da cozinha. Tento fazer com que ela caia na minha rede, que ceda algo além dos nomes dos mortos com quem conversa entre o café e a missa das seis. O problema é que as lembranças dela são todas tecidas uma na outra e isso dificulta montar o quebra-cabeça. Jogo o anzol naquele mar de memórias mas ele sempre volta vazio.
Fazer companhia a ela é ser marinheiro de primeira viagem. Perdida, sem bússola e estrelas pra indicar norte ou sul. Mesmo desnorteada, me arrisco. Peço que faça contas; não qualquer conta: quero saber as idades de todos os familiares. Rasgo uma folha de papel e a entrego junto com uma caneta. Vó, estamos no ano de 2018, a senhora nasceu em 1929, então quantos anos a senhora tem? Rabisca o papel. Se espanta. Não tenho 89 anos! Olha com cara feia. Não acho não, exclama. Tenho 80 anos! Não se preocupe vó, eu também não queria ter a idade que tenho. O fato de ter esquecido 9 anos em algum canto da memória deve servir pra algo. Imagine ter quase 90 anos e estar lúcida! Que feito! Quando calcula a minha idade, ri. Nossa, como você tá velha! Obrigada, vó. O que mais posso dizer?
Guardada no oceano de terminações nervosas, a memória é tesouro dos mais cobiçados. Há um mapa, engarrafado, dançando junto das ondas, mas ninguém sabe onde procurar. Enquanto à deriva, emite sinais de luz, somente visíveis aos olhos bem treinados dos capitães de jaleco branco, que o navegam com certa competência, embora ainda com instrumentos antigos. Os olhos da minha avó são como faróis numa praia de cascalhos, tentando guiar e trazer para si algo que faça sentido. Tentando se agarrar à alguma lembrança. Mas não passam de névoas, fantasmas que apenas fazem cócegas em seus pensamentos.
Perder o controle paralisa.
Avó, filha, neta. Essa é a sequência. Vejo muito de minha avó em minha mãe. Vejo muito de minha mãe em mim. Somos uma. Sofro com a ausência dela, de todas, de mim mesma. Imagino que devo passar por isso um dia, como minha mãe também passará. Nesses momentos, o medo me invade. Exatamente por temer naufragar nesse Triângulo das Bermudas, consumidor de memórias. É o medo de cruzar essas buliçosas águas do futuro, que se plasma de avó, pra filha, pra neta.
Ela olha pros armários da cozinha, pra porta que demarcava seu céu e a sua Terra. Olha pra pia de um branco encardido, passa o dedo pela mesa com muito pó. Sua casa era seu reino, agora é seu cárcere, seu espaço de existir. A casa foi reformada recentemente. A gente sempre tem que reaprender a viver, a se moldar a novas situações. Assim como ela teve que conviver com a falta daquela faca específica de cortar pão, há muito tempo sem serra. Alguém deu sumiço nela, graças a Deus. Não cortava mais nada, ocupava espaço apenas, na gaveta e na memória já apertada.
Vira e mexe, pergunto para minha mãe sobre a relação que tinha com minha avó. Ela se esquiva, diz que não há nada de especial para saber. Não entra em detalhes. Deve ser porque, enquanto uma tenta lembrar, a outra faz igual esforço pra esquecer.
Como será ser invólucro de uma vida que não se recorda de ser vivida, me afundo na pergunta. Talvez seja um esconderijo, pra ficar dentro de seu próprio corpo. Um segredo. Acredito que tenha vivido bem, embora eu saiba muito pouco da sua história. Tudo o que faço é especular. Por breves momentos, ela vive pra que eu lhe arranque algumas lembranças. Vive também para ir às missas, e pra procurar sua faca de pão enquanto bate boca com quem já foi dessa pra melhor.
Meus pais sempre conversam entre si sobre como aproveitar ao máximo os dias de velhice e me pergunto como será quando estes dias chegarem. Compartilharão suas solidões, compreensões ou sua falta de memória? Se já não se pode mais falar em futuro para minha avó, pelo menos um em que sua vontade seja autônoma e não narcotizada, o que será que a travessia dos anos nos reserva? Penso e degluto a falta de esperança, sem mastigá-la.
Quando chega a hora de ir embora, me transformo em criatura marítima, cheia de tentáculos e pegajosa. Não consigo me desgrudar dela. Entre nós, o silêncio diz muita coisa. E ficamos lá, ela, eu e seus amigos intangíveis. Presente e futuro. Sorvendo até a última gota de sanidade que ainda nos resta, enquanto o relógio na parede não nos diz a hora de parar.