Bordinha da Pizza
Depois de passar horas olhando para o cardápio, lendo cada linha, vendo cada sabor, analisando cada valor, Linda levantou os olhos e buscou os de sua ilustre convidada para a refeição, Carolina. As duas se olharam, assentiram e Linda levantou a mão, chamando o garçom.
— Pois não? — disse o garçom de nariz em pé depois de apostar com o caixa qual das duas ia pedir a água da casa. Estava com o celular na mão para anotar o pedido, apesar de achar que não precisaria, e preparando o educado discurso que iria fazer para pedir às mal-vestidas que se retirassem por ocupar a mesa de pessoas pagantes.
— Sim! Nós vamos querer uma bordinha de catupiry e uma de cheddar. — disse Linda encarando o cardápio.
— E o sabor da pizza? — o tom de voz do garçom foi neutro, como bem treinara, mas estava rindo internamente em ver as mulheres se endividando e seus 10% aumentando.
— Não queremos pizza, queremos a borda recheada, com o melhor catupiry e cheddar que tiver, por favor. E bem quentinhas e crocantes. — enfatizou Linda levantando lentamente o olhar ao garçom.
— Minha senhora…
— Senhora é sua mãe! Eu sou senhorita! Ou me chama de Linda, mas de senhora, ha! Nunca! — cortou Linda, fechando o cardápio com força para fazer barulho de sua indignação fingida.
O garçom respirou enquanto guardava o celular e se preparava mentalmente para lidar com a que parecia barraqueira.
— Senhorita, nós não vendemos a borda da pizza.
— Como não!? Está aqui: borda de catupiry, doze reais — disse Carolina, mostrando o cardápio para o garçom.
— E eu não estou lendo “obrigatório comprar a pizza para adquirir a borda” — completou Linda, colocando os dedos das mãos cruzados embaixo do queixo e encarando o garçom.
— Mas, senhoritas, ninguém vende borda de pizza!
— Você não sente saudades, Carol, de quando existia o ditado “o cliente sempre tem razão”? Se vocês não vendem, então por que raios está no cardápio?
— Se não vende, deveria ser gratuito, né Linda? — completou Carolina, com Linda acenando positivamente em seguida.
— Nós vendemos tal item que está no cardápio para ser um complemento da pizza!
— Não, não é complemento. Se fosse estaria na seção de complementos, igual a tirinha de bacon, olha aqui! — disse Carolina mostrando o cardápio ao garçom novamente, que passou a mão no rosto, impaciente.
— Qual o problema de pegar um dedo de massa, abrir do tamanho de uma pizza grande, encher de queijo, assar e servir a gente!? — perguntou Linda de olhos arregalados e levantando as mãos como quem pergunta.
— Se tem gente que pede pizza sem borda é só fazer com a borda, cortar e dar para a gente! A gente paga os doze reais, não somos mendigas desempregadas. — sugeriu Carolina, contente com a brilhante ideia
— Exato! Viemos aqui comemorar o novo emprego da minha amiga Carol! Ela agora vai expor a arte dela no…
— Bom, meus parabéns, Carol — parabenizou o garçom com um falso sorriso para Carol enquanto cortava a fala de Linda —, mas aqui vendemos apenas o que está no cardápio.
— E borda de pizza está onde? Voando!? — pistolou Linda, comentando explosivamente com um tom de voz alto, atraindo a atenção das pessoas no restaurante ricamente decorado, com plantas, teto alto, paredes brancas, um piano de cauda, uma fonte de água no centro e cortinas beges nas janelas.
— O que está acontecendo aqui?
A voz vinha de um senhor de cabelos brancos e terno, com um broche que dizia “gerente” colocado em cima do bolso do casaco do paletó. Ele descia as escadas do andar de cima da pizzaria, nas escadas de mármore (pelo menos era o que aparentava). Era uma voz tranquila, um senhor simpático, Linda achava que iria resolver o problema.
— Senhor gerente, que bom que veio! — disse Linda com um sorriso no rosto, tentando aparentar ser uma linda simpatia. — Me tire uma dúvida: tudo o que está no cardápio, eu poderia comprar, certo?
— Corretíssima! Se tiver dinheiro.
— Dinheiro eu tenho. Então tá, fala para esse seu assalariadinho que queremos jantar borda de pizza! Uma de catupiry e outra de cheddar, s’il vous plait — disse Linda, debochada, se endireitando na cadeira e colocando as mãos no joelho cruzados.
— E qual o sabor da pizza? — perguntou educadamente o gerente, esperando para ver se realmente as senhoras teriam dinheiro para pagar.
— Nenhum! Queremos só a borda. Agora vai logo que estou faminta!
— Sim, patrão, estou há um tempo tentando explicar para as senhoritas que não vendemos bordas de pizza, mas… — disse o garçom virando-se para o gerente, como quem diz que a culpa não era dele e rogando com os olhos para não ser demitido.
— E antes que diga as mesmas coisas que seu garçom bonitinho, sim, está no cardápio a opção de borda de pizza, não está na parte de complementos e não tem nenhum aviso dizendo que somos proibidas de pedir as bordas sem a pizza, a famosa venda casada. — mostrou Carolina o cardápio para o gerente.
— Senhoritas… — disse o gerente após uma pequena pausa para por os pensamentos em ordem. Linda o encarava, pensando que fazia tempo que provavelmente ele não pensava. — Simplesmente não…
— ALGUÉM AQUI QUER PEDIR UMA PIZZA SEM BORDA? — gritou Linda, interrompendo a fala do gerente e olhando ao redor para ver se alguém no restaurante era sensato.
— Eu quero, mamãe! — disse a criança da mesa ao lado, recebendo um tapa na boca pela mãe logo em seguida.
— Viu! É só fazer a pizza daquela família simpática com a borda que pedimos e tirar antes de entregar! Dá a pizza para eles e a borda para a gente! Todo mundo sai feliz e vocês não perdem uma cliente. — explicou Linda, olhando já impaciente para o gerente. Estava cansada daquela conversa infrutífera.
— Senhoritas, bem, se não vão pedir a pizza — enfatizou o gerente —, vou pedir educadamente que se retirem ou eu chamarei a segurança por estarem fazendo baderna no meu restaurante.
Os seguranças, de olho na conversa desde que perceberam que o garçom ali se demorava, começaram a se aproximar da mesa. Todos no restaurante olhavam para Linda e Carolina, esperando o que iria acontecer, esperando o show começar. Alguns estavam com celular a postos para filmar, outros se deliciavam com seus vinhos esperando o restaurante ser limpo da “ralé” e ainda tinha os que ignoravam a situação, fingindo que elas não existiam. Linda deu um longo suspiro, já sabendo o que ia falar:
— Senhor gerente, você não acha incrível como nada no seu restaurante é acessível? — disse Linda calmamente, com um sorriso no rosto, como que explicando para uma criança. O comentário pegou a plateia de surpresa, agora tendo chamado a atenção de todos para saber onde iria o provável discurso da mulher deslocada. — Exatamente, seu restaurante não é acessível, começando que precisei pegar um ônibus e um trem para chegar o mais próximo de caminhar a menor distância, de 40 minutos. Foi feito para se chegar de carro, como comprova o manobrista ali na porta. — Linda apontou com um aceno em direção a porta — Pois bem, consegui chegar aqui pela maneira mais antiga, mas me deparo com outra barreira bem clara, afinal quem gasta 150 reais numa refeição, sendo que esse valor mal paga um gás e 2 sacos de feijão? — Linda fez uma pequena pausa e olhou ao redor. Havia muitos rostos fechados e outros que desviavam o olhar, como se não fosse problema delas o que a mulher relatou até agora — Eu e Carol temos 30 reais no total e este seria o ambiente perfeito, digno da comemoração da nova profissão dela, realmente aqui é muito bonito, mas o senhor conseguiu colocar várias barreiras invisíveis que só passa quem anda com lobo-guará e peixe na mão. — o gerente estava com uma raiva crescente, com suas orelhas e pescoço rosado o dedurando. Linda, notando isso, continuou num tom brincalhão — Vamos, cadê o espírito capitalista! Que motivos estou te dando para não lucrar se peço o que muitos jogam fora e ainda pago por ele? Agora me responda, você não pode ou você não quer que duas mulheres negras com roupas compradas na feira e que não combinam com a branqueza do lugar gastem o que estão dispostas a gastar? Sendo que até solução nós damos para seu problema em nos servir.
Linda terminou seu discurso, infelizmente ensaiado diversas vezes, pois a vida assim exigia dela. Sua performance não era opcional se quisesse se mostrar uma igual. Alguns até convencia, mas muitos a ignoravam. O restaurante permaneceu em silêncio, apenas se ouvia o fungar da criança que havia levado o tapa na boca e a água do chafariz. O gerente, destoando-se do ambiente branco com sua cara vermelha, já tinha a resposta final, concreta, a ser dita com um tom de supressão de um grito para manter a dignidade perdida:
— Como eu disse, senhoritas, se não vão pedir pizza, podem sair.
Linda sustentou o olhar que o gerente lhe dava, como se estivessem brincando de quem pisca primeiro. Depois que o gerente piscou e desviou o olhar, arrumando o cabelo, ela empurrou a cadeira para trás, educadamente, pegou sua bolsa de tricô colorida com animais da savana e saiu, de cabeça reta, sem olhar para trás. Ninguém a impediu e os que estavam a sua frente, davam passagem. As câmeras ainda a filmavam e os holofotes a seguiam. Carol a seguiu, da mesma forma. Todos os olhos as acompanhavam na saída até elas desaparecerem ao dobrar a esquina.
— Ai Carol, será que não vamos encontrar nenhuma pizzaria? — disse Linda baixando a guarda, com uma voz triste.
— Vamos miga, vamos sim! Seu projeto é lindo e alguém nesta cidade será digno o suficiente! — consolou a amiga com palavras e um abraço caloroso, enquanto voltavam andando pela mesma rua que vieram, seguir sua jornada de volta para casa e ver se encontravam alguma pizzaria no caminho.
Linda da Silva Behr tinha um projeto, mas só falta uma peça para concretizá-lo. Já havia visitado 4 pizzarias com Carolina naquela semana, sempre disfarçadas pois buscavam imparcialidade. Ela tinha 1 milhão de reais disponíveis e um plano na cabeça: levar o dia da pizza para quem usa o dinheiro como sobrevivência. Trazer um pouco de alegria de uma comida boa, acessível pelo menos uma vez. Era o primeiro projeto de muitos que pretendia realizar. Linda queria encontrar pizzarias para o projeto, mas não quaisquer umas, e sim aquelas dispostas a acolher as bordas de pizza, as bordas da sociedade, a periferia.