Por Amanda Moreira de Almeira
Ele assiste o primeiro número ser retirado do globo. Comprou o bilhete depois de um longo dia de trabalho. Faltavam mais 11 anos até a aposentadoria. 11. Na lata.País inteiro concentrado para acompanhar o sorteio dos números da loteria com o maior acumulado da história. Até donos de bilhões apostaram. Vai que dobravam a fortuna? Até donos de migalhas apostaram. Vai que trocavam as migalhas por pão de verdade? Valeria a pena encarar mais uma noite de fome por uma vida com bilhões de pães.
Mais um algarismo sorteado, e ele tem também. 42. A idade da mãe quando veio a falecer, deixando um menino de 8 anos. À essa altura, era meio esmirradinho, incompetente, e só daria para trabalho de escritório, como dizia o pai. Com o 8, como já é de se esperar, ele marca a cartela mais uma vez. Pronto, metade dos seis números já foram.
O apresentador retira outra bola, fazendo menção ao prêmio bilionário que mudaria a vida de um sortudo naquela noite, e é hora da quadra ficar garantida com o 56. Endereço de seu apartamento. A esse ponto, o homem já levanta da cadeira, anda pelo conjugado quarto e sala, e deseja, como em poucas vezes antes, que não morasse sozinho, para que alguém pudesse confirmar que aquilo estava acontecendo de verdade. Não parece. Não condizia com sua vida de dores pacatas.
A quinta bola é cantada, e o homem puxa os cabelos, mal sabendo como lidar com o fato de que pode ser o próximo bilionário do mundo. 1. Quem é que escolhe 1? Com aquele numeral, parece até que estava apostando contra ele mesmo. Nunca foi digno de menções honrosas. Só dava para trabalho de escritório, de fato. Nunca havia sido o primeiro em nada. Talvez o primeiro e único filho de seu pai, o que era louvável. Nenhuma outra criança deveria passar pelo martírio de crescer à sombra do crápula.
Com os olhos fitos no televisor, agarrado a seu bilhete, acompanha a tela perder as cores. Encara a massa preta. Não pode ser! É o último número! Seu último número! Qual é o último número?
Depois de alguns segundos passando os olhos da tela preta para o bilhete para a tela preta, se apressa a ligar o rádio. Demora demais. O locutor já agradece aos ouvintes e volta à programação normal, com os informes oficiais do governo. Qual o sentido de promover um prêmio fora das perspectivas de qualquer trabalhador comum, permitindo que a classe sonhasse com luxos disponíveis apenas a um seleto grupo da população, se não o deixam saber qual é o último número?
Sem mais formas de saber se era o novo bilionário da pátria, sai de casa rumo a uma noite mais fria que o normal para o mês de agosto. Nem seria preciso um evento de comoção nacional para fazer com que as ruas estivessem vazias. Os poucos gatos pingados são os que seguem rumo ao turno noturno e não arriscariam seu passarinho na mão por um bilhão deles voando. Pergunta a alguns deles qual foi a última bola do sorteio. Nem sabem.
Percorre os becos até chegar ao centro distrital para ver as telas na vitrine da loja de eletrônicos. Todas sintonizadas no canal oficial do governo, que transmite um educativo do novo sistema de troca das horas de trabalho por vales de alimentação, higiene e lazer nos postos de recolhimento. Nada do último número.
“Devem sair na próxima edição do informativo oficial do governo”, pensa. Mas está elétrico demais para ir para casa e repousar enquanto espera para retirar seu folhetim na manhã seguinte. Vira a esquina e vai a seu local de trabalho. Organiza o que já estava organizado no único cubículo iluminado aquela noite. Cogita apontar os lápis gastos nos cubículos dos colegas, mas é invasão demais, desiste. Aponta toda sua caixa até não haver mais lápis. Limpa a sujeira.
Prevenido, como todo menino que só dá para serviço de escritório, gasta as horas seguintes fazendo as tarefas do restante da semana. Não quer deixar nenhum companheiro de cubículo na mão se desaparecer de uma hora para outra. É comedido, mas não tanto para chegar a bater ponto depois de embolsar os bilhões com seu último número.
Checa os números da contabilidade do projeto mais recente. Pensa no último beijo que recebeu da mãe em seu leito de morte. Prepara a planilha de gastos da próxima remessa. Pensa em cada vez que recebeu uma surra de seu pai por apanhar na escola e não revidar. Confere a redação do relatório fiscal do subsetor. Pensa em como a luz do seu conjugado quarto e sala nunca mais vai acender às cinco e meia da manhã se aquele último número for mesmo dele. Talvez seja até bom não dividir o espaço com ninguém, reflete o homem. Ninguém dará falta dele. Ninguém o importunará com seus bilhões.
Sai do sistema operacional. Checa a hora. O folhetim já deve ter saído. Com o cabelo desgrenhado e olhos em chamas pela noite em claro, vai à banca da esquina. O jornaleiro acaba de dispor os cadernos na pequena estante. Lembra das cassetadas na nuca com jornal enrolado a cada vez que não respondia a uma pergunta importuna do pai. É agora. Aperta o passo. Esbarra em um estudante apressado para a aula. Esboça uma desculpa. Fecha os olhos frente à banca. Inspira. Expira. Encara a manchete.
“1. 8. 11. 42. 56. 60. Prêmio acumulado!”
- Nem após a morte lhe deixava em paz. Era como se gargalhasse em sua cara. Apostou 59, idade em que o velho homem finalmente havia partido dessa com certeza para pior. 60. Um recado do pai, que ainda ria por último. De suas dores pacatas, de seu conjugado quarto e sala, de seu cubículo. Acompanha as gargalhadas póstumas do defunto. Goza de sua falta de amor, falta de quem fosse sentir sua ausência, e a mais recente descoberta falta de esperança. Dane-se a quina. Rasga o bilhete.