Primeiro Lugar Concurso de Contos: Herança

Por Natasha Fernanda dos Santos S. Zanetti

HERANÇA

Foi quando voltei, na última vez que atravessei o atlântico por ele. Havia deixado tio Franco em seu quarto sanguíneo. Suas palavras soavam como migalhas e eu levava já muito tempo para recolhê-las e pô-las em ordem, a paciência esgotada e oprimida pelas paredes, móveis e jogos de cama vermelhos. Eu me perguntava porquê eu, só por lamentação. Fiquei magoada quando me disse.

Vá embora, eu já estou morto, calcinado, não preciso de você, só de um cigarro. Vá

cuidar de sua vida, criança.

Criança, que insulto. Já não conseguia cuidar da minha vida enquanto um câncer cuidava

de seus pulmões. Deixou-me as chaves da casa e seu mistério como herança.

*

Tio Franco era um ser excêntrico que teve a sorte de nascer homem, pois homens são excêntricos, enquanto as mulheres são loucas e devem ser internadas em um hospício ou casamento. Também teve a sorte de nascer em uma família abastada e fechada. Nós, os Farneses, somos fermento de um pão que cresce muito lentamente. Eu e meus primos somos a primeira geração que não casou entre si. Papai e mamãe são primos, as sogras são suas tias, os cunhados também são primos. Papai nos incentivou, a mim e a Stefano, meu irmão mais velho, a sairmos do forno para não corrermos o risco da degeneração. A maioria dos Farneses têm barrigas renascentistas porque nossos rins são recheados de cistos que crescem e degeneram. Tio Franco teve a sorte de não ter o mal da família, era magro, o peito uma caverna e, embora tivesse a postura encurvada, o pescoço era rijo com o queixo apontado para cima, o pomo de adão querendo fugir de si. Poucas palavras saíam de sua boca de fumaça. Como virtude, os olhos que contavam quilates e o poder de negociação irrecusável.

Mesmo assim, para meu pai, seu primo e também cunhado, era um degenerado, um exemplo a ser evitado. Mas para mim, seus armanis pretos eram imantados. Sempre alimentei por tio Franco um misto de encantamento, curiosidade e medo.

*

Dizia que detestava crianças desde quando era uma. Durante as reuniões de domingo, seus olhos reviravam-se como os globos terrestres da biblioteca em nossas mãos. Repudiava nossas pernas hiperativas, as vozes agudas, nossa inutilidade infantil. Sua primeira interação comigo foi quando exigiu que eu lhe desse meus dentes de leite. Neguei, disse que os guardaria para a fada do dente que os transformaria em um pequeno diamante.

Não existe fada do dente, é uma crendice idiota. Se é dinheiro que você quer eu lhe dou.

Eu esperava ver a fada do dente. Engoli meu primeiro incisivo frouxo, uma oportunidade

perdida, não daria os próximos por dinheiro nenhum.

Se você não me der, eu vou arrancá-los da sua boca enquanto você dorme.

A insônia se instalou debaixo das minhas cobertas. Stefano confirmou:

Ele tem razão, não existe fada e ele não está brincando quando diz que vai arrancá-los

à força.

Era véspera de natal e ele não veio durante a noite. No café da manhã coloquei meus

dentes sobre a mesa, inclusive os que não estavam assim tão moles. Eu tinha sangue seco

debaixo das unhas. Nonna Consuelo quis obrigá-lo a devolvê-los.

Agora são meus.

Disse a ela que não me importava.

Ele recolheu os dentes da mesa com um sorriso selado e satisfeito.

Porquê você guarda essas coisas?

Porque sou um colecionador.

Citei minha mãe:

Colecionar e ostentar é coisa de gente brega.

Ele apagou o cigarro no meu prato recém servido, me fitou por cima dos óculos congelando o tempo. A copeira fez sinal da cruz. Ele riu e foi para o jardim, acender outro cigarro. A tosse era sua única ostentação. Sua coleção era secreta.

*

Apesar de tudo, sentia que ele gostava mais de mim do que dos outros integrantes da família. Tinha essa crença de que eu seria sua filha perdida e caçava coisas para ele, uma gataque presenteia seu humano com pedaços de madeira do quintal do sítio, folhas secas, bonecas quebradas, pedaços de louça acidentadas, libélulas secas. Ele analisava os presentes como avaliava diamantes, às vezes jogava fora, em outras guardava na bolsa que sempre trazia a

tiracolo. Somente me agradecia quando trazia conchas, fósseis de estrelas do mar, rochas marinhas. Nunca ia à praia mesmo apreciando os restos da sua natureza. Tinha repulsa em pôr os pés na areia. Era famosa a história de seu chilique homérico, quando, na infância, uma alga enroscou-se em suas pernas. Vovô dizia que o amarraria em um tronco de madeira fincado ao mar de sargaços se ele não parasse com esses melindres afeminados.

*

Trabalhava como avaliador de joias e pedras preciosas, começou cedo na joalheria Farnese, viajava para Europa negociar pedras e valores, sempre trazia na mala peças garimpadas. Não gostava de antiquário renomado e asséptico, apreciava mesmo um bom galpão poeirento. Quanto menos uma coisa valia, mais feliz ele ficava com a aquisição.

Comprou um casarão de 1920 que valia mais dinheiro demolido e casou-se com ele ignorando todos os conselhos (inclusive o da corretora que o aconselhou a manter somente a fachada). Era 1995 e me lembro do alvoroço da família julgando, pelas costas, as “franquisses” do

meu tio, seus quereres de ruína e mau gosto. Como podia um Farnese morar em um casarão condenado, de estilo eclético metido a colonial, logo nós que somos conhecidos por habitar e investir em construções modernistas, assinadas por arquitetos de renome internacional, alguns deles nascidos do ventre de nossa família. Não digo isto para ostentar, pois todos conhecem Desi e Theodoro Farnese. Foram eles que, como intrusos, visitaram o casarão em seu estado precário. Foram testemunhas da decadência das paredes mofadas, atravessaram receosos o salão dominado pelo bolor, cupins e rachaduras que estouravam o gesso do teto. No quintal, flagraram tio Franco desenterrado ossadas de cachorros como se fossem relíquias egípcias resgatadas por arqueólogos franceses.

Logo o flagra se espalhou pela família que chegou a planejar uma interdição. Mas cada um de nós foi tomado pelos próprios afazeres. Eu fui aos poucos me desinteressando da aura mítica que eu mesma havia criado em torno dele. A adolescência havia me tornado apática para as coisas dos Farneses. Me desprendi e os transformei em “outros”. Fiz minhas viagens e garimpos, me construí como mulher enquanto Tio Franco construiu distância. Anunciou sua aposentadoria precoce após a reforma ser finalizada. Até mesmo tio Theodoro teve de admitir o milagre operado no casarão, o salão estava irreconhecível. Tio Franco nunca revelou o nome do arquiteto responsável pela reforma. Dizia,

Eu amei essa casa e em troca ela também me amou.

Apenas.

Suas viagens ficaram cada vez mais raras. Não fazia viagens longas, a abstinência do cigarro era uma de uma agonia enervante, começou a sentir pânico nos vôos, a intolerância pregada aos fumantes o aborrecia. Além do mais, o casarão tinha suas demandas, precisava de atenção. Vivia recluso em sua redoma, recebia poucos convidados que obedeciam às ordens de permanecer no térreo. Nem mesmo aos empregados eram permitidos subir. Um deles, crente de que meu tio guardava um tesouro de sultão, quebrou a regra. O empregado foi violentado com fúria, quando queria meu tio encarnava uma força ancestral e custou caro aos meus avós a discrição da família do empregado (que acabou preso acusado de roubo). Por sorte dele a internet não era tão popular naquela época.

*

Quando o enfisema pulmonar evoluiu para um câncer, meu tio se viu forçado a permitir o acesso ao quarto em que dormia. Precisou equipá-lo para que lhe oferecesse um pouco do conforto hospitalar, embora a atmosfera vermelha do cômodo não se adequasse à brancura asséptica dos leitos hospitalares. Acreditava que a cor vermelha o fortificava, aumentava sua imunidade, renovava as células e mantinha sua mente viva. Até seus pijamas, meias e lenços eram vermelhos como o sangue que expulsava dos pulmões.

Tio Franco se gabava do fato de nunca ter dividido a cama com alguém, nunca soubemos de qualquer relacionamento amoroso seu. Embora nossa família seja numerosa, nunca teve intimidade com ninguém, somente com nonna Consuelo, com quem conversava em italiano em um tom de voz muito baixo, quase por telepatia. Com a nonna morta e seus dias contados, exigiu minha presença como ouvinte de suas histórias e segredos que jamais ousarei contar.

Se conto aqui o que me ocorreu é para manter viva a memória da nossa experiência, mas não posso ultrapassar certos limites, mesmo tendo as chaves em minhas mãos.

*

Não nos víamos desde a vez em que o encontrei no Chile, por acaso, há 15 anos. Quando a reforma acabou eu já estava morando fora, pulando de um país para o outro, sendo mais visitada do que visitante. Foi pelo seu chamado que conheci o casarão. Já tinha visto algumas fotos que mamãe me mandou, um petit comité em que Tio Franco estava inesperadamente dócil e receptivo. Ficou assim comigo, dirigia seus dissabores para os enfermeiros e seus irmãos.

Ainda assim, não deixava que eu me aproximasse do mais secreto cômodo onde habitava suas coleções. Por várias vezes eu tive a oportunidade de roubar as chaves do seu peito, quando a morfina o envolvia em nuvens letárgicas. Segurei minha curiosidade felina com força. Eu sabia que as portas seriam abertas por mim, somente por mim. Bastava esperar que ele dormisse para sempre nas chamas do incinerador.

*

Fui recebida por um bafo almiscarado. Não conseguia encontrar o interruptor e atravessei o quarto com a mesma pressa em que atravessava o corredor da casa de meus pais com medo de fantasmas e sede. Derrubei uma sombra branca e sólida e não olhei para atrás para ver o que era. As paredes negras foram se revelando azul marinho à medida em que eu abria as cortinas das janelas que davam para os fundos do quintal. As portas ainda estavam sobre o véu do lusco fusco vespertino. O que eu havia derrubado eram ossos, uma costela abaulada ainda balançava no chão. Havia uma estante que se estendia até o teto e ao meu lado uma mesa com um caldeirão de grãos de algo que parecia sílica. Dulcinéia, a boneca espanhola que me acompanhou por toda infância estava sem o corpo almofadado, sua cabeça em uma redoma dividindo espaço com a arcada dentária de um cavalo. Havia também pilhas de bonecas queimadas, quadros com insetos catalogados, gamelas de madeira, louças, redomas, imagens sacras. Na estante que se estendia até teto, potes etiquetados com dentes de leite, sisos, ninhos de cabelos, pedras, rochas de todos os tamanhos e geometrias. Mergulhado em formol um rim policístico enorme que me causou ânsia e o ímpeto de envolver meu ventre com os braços, me preservar, me abraçar e me consolar pela miséria do nosso corpo. Um sentimento de humanidade, de integração total com o espaço tomou conta de mim. Fui então incorporada por uma saudade oceânica daquele gabinete embora nunca tivesse posto os pés ali, eu estava matando saudades de cada osso, cada redoma, cada cheiro, textura. Eu precisava envolver todas as coisas, aprisioná-las entre os dedos da memória, despedir-me delas. Ao mesmo tempo em que eu sabia que era eu, eu me sentia outra, possuída e possuidora. Chorei a nostalgia de estar onde nunca estive, de habitar uma alma que não era a minha até me exaurir da existência.

Dormi profundamente por horas. Acordei no chão com o frio das cortinas infladas que invadiam a escuridão como navios fantasmas e, apesar de ainda sonolenta, pude perceber o espaço tão vazio quanto meu peito. Não havia mais do que me despedir. Fechei as portas e fui até o quintal, a terra amaciada pela chuva sugou as chaves em suas profundezas. Alguém as encontrará novamente. De minha parte, se eu pudesse as engolir, teria engolido.

 

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