O segundo conto premiado no Concurso de Contos Dirce Doroti Clève, se chama “Maria e o carrinho” e foi escrito pela autora, Ana Richier de Souza Ferreira.
Maria e o carrinho
Foi na rua de casa, que a menina virou carro ou o carro virou menina, nem sei direito, depois de tudo, parecia que o trem tinha virado uma entidade do bairro. Nossa rua era composta por sete casas populares, dispostas lado a lado, divididas por um muro de dois metros de altura. Na outra extremidade havia três galpões abandonados, a rua estava no fim do bairro industrial, na cidade de Moeda, interior do estado de Minas Gerais. Assim, caso eu escorregue na linguagem — trem, é tudo que falta, uai, é uai mesmo, “sô”, chama atenção da segunda pessoa, e o “ali”, é longe.
Eu residia na esquina, Maria morava duas casas à frente, completamos nove anos em 1992. Na vizinhança havia mais dez crianças de idades e sexo variados, nós éramos os mais velhos, e organizadores das brincadeiras, as vezes o trem se dividia entre meninos e meninas, mas ainda éramos os líderes, eu tinha orgulho da minha posição e tenho certeza de que Maria sentia igual.
Aos nove anos Maria era uma criança eloquente, com uma pele morena, que reluzia com os raios de sol, tinha cabelos escuros e ondulados, que viviam trançados e alcançavam o meio de suas costas. Seus olhos castanhos atentos, compunham seu semblante desafiador. Achava que ela possuía cara de deboche, era uma catarrenta metida a ser melhor que eu.
Para me descrever não preciso de muito, basta o fato das senhoras sempre afirmarem:
— Como é lindo o Duzin!
— Bonito e fofo, dá vontade de levar pra casa né!
Éramos obedientes ou tementes à correia, de toda forma, não excedíamos a paciência dos adultos. Não havia em nossa comunidade nada de especial, nenhum fato curioso que alterasse o clima pacato de nossa convivência, e assim acabou o ano de 1992.
Janeiro de 93, o primeiro evento mais esperado do ano, era o aniversário de dez anos de Maria, tinha parentes na capital, então o trem era bom de mais, ganhava ótimos presentes. — A catarrenta era tudo de ruim, — menos egoísta, sempre dividia os brinquedos. No dia esperado, estavam lá os vizinhos, parentes, nossa turma e as amigas da escola, que eram muitas. A comida estava ótima, lembro de comer muitos doces e encher os bolsos de bala delícia, o bolo era enorme e deixava a criançada ansiosa só de olhar. O sofá da sala virou deposito de presentes, nem migalha cabia nele, — catarrenta sortuda! — Lembro de pensar assim.
Após a divisão do bolo, partimos para a sala ansiando que ela ganhasse brinquedos modernos, dos quais todos aproveitariam. Abria um por um, e bonecas de tipos variados se amontoavam, até que surgiu uma corda e uma bola de vôlei, parecia ser só. A tia da capital, fez questão de entregar um embrulho nas mãos de Maria, era o último presente. — Que carrinho bonito — pensei, admirando aquele brinquedo perfeito. Não era de plástico, parecia muito com o Escort, carro famoso na época, vi a felicidade de Maria ao pegá-lo. Os adultos começaram a cochichar:
— Carrinho…— coisa de menino homem, uai! — Ouvi dizerem á minhas costas.
— Essa não acertou no presente não. — Alguém respondeu.
— Pode doar, já que não serve pra ela né! — Outro concluía.
— Povo da capital é assim. — Afirmaram.
— Se fosse minha filha, não deixava nem… — Sussurram próximo à porta.
Depois foi um silêncio curto, até que os convidados começaram a se despedir. Fui arrastado sob protesto, não queria ir embora, queria brincar com o Maria e o carrinho.
No dia seguinte, estava ansioso para ir brincar com o carrinho de Maria. Sentei- me para o café, o trem era o assunto entre meus pais:
— Adivinha o que Maria ganhou ontem? Dizia minha mãe.
— Povo da cidade, deve ter dado algo caro ne?
— Se foi caro, não sei! Deram um carrinho bem bonito!
— Um carro para uma menina? Ficaram tanto tempo longe, que confundiram o sexo da sobrinha! Meu pai zombou. — Vai virar trem trocado!
— Uai, querem que ela seja igual as mulheres modernas da cidade grande! Sei bem onde isso vai parar…
Apesar de não entender toda a conversa, percebi que era melhor não pedir pra ir à casa de Maria, fiquei triste por perder o resto do bolo. Nos dias que se sucederão, Maria e o carrinho ainda recebiam a atenção de todos, comecei a pensar: “Ganhei vários carrinhos e ninguém deu bola, tudo porque não pareciam um Escort !”
No mercado ouvi as vizinhas da outra rua proseando:
— Soube da menina do carrinho?
— Ouvi um bocado uai… parece que ela ainda não desfez do carro, né?
— Dizem que a mãe sempre foi frouxa com ela, por ser única.
— E o pai?
— É caminhoneiro né. — Dizem que são próximos, as vezes ele desejou um menino!
— Sei não, acho que não liga pra esse trem, nem deve ser filha dele, tá sempre fora! Quem se fia.
Acabaram de escolher suas laranjas e se foram. Muito ouvi naqueles dias e pouco entendi, mas era notável a desaprovação quando o assunto era Maria e o carrinho. Na volta para casa, vi os dois brincando na varanda, foi a primeira vez que vi a catarrenta brincando sozinha.
Em um domingo, corri pra lá sem que minha mãe visse, finalmente ia brincar com o carrinho. Maria se assustou com minha presença.
— E aí Maria, posso brincar também?
— Pode sim, você gostou dele né?
— É o mais bonito que já vi, uai! Um dia vou comprar um de verdade. Você tem é sorte sô!
— Tenho, por isso não largo!
— Seus pais vão deixar você ficar com ele?
— É meu, uai!
Brincamos até o almoço ficar pronto e minha mãe começar a me gritar pela rua. Aquela foi a última vez que brinquei com Maria.
— O que foi fazer lá uai, quem deixou? Minha mãe estava ralhando comigo durante o almoço.
— Parece bobo, num sabe que o trem não tá bom na casa dela? Num vê que tá sempre com aquele carrinho na mão, não é certa das ideias. Não é amizade pra você! Tá me ouvindo?
Eu só comia de cabeça baixa, não entendi direito a causa do sermão, mas entendi que não era pra ficar com Maria. A criançada brincava junto, e em grupos, mas agora só eu mandava em tudo, Maria não saia de casa, — devia estar com o tal carrinho.
A escola ficava logo ali, íamos caminhando em bando, esperava que Maria fosse junto, à frente como costumava, ou entre as meninas. Mas nem sinal dela no primeiro dia. No segundo dia o pai de Maria à levou, estava sentada no alpendre da escola, mas ninguém chegou perto dela, No intervalo Maria não estava na roda das meninas, mas atrás da cantina, com seu carrinho nas mãos.
No meio do ano, alunos novos entraram na sala: “Bibip bibip”, faziam quando Maria passava, ao ouvirem o nome dela na chamada, quando ela tentava participar da aula e na educação física durante os jogos. Ouvia-se “bibip bibiiiip” incessantemente, até mesmo quando Maria estava no banheiro, havia alguns deles fazendo o barulho na porta.
— Não mexe com Maria não, Maria é sapatão!! — cantavam sempre que podiam, em um coro que só aumentava.
O comportamento dela continuava o mesmo. Brincava quieta nos cantos, sempre com seu carrinho. Nem olhava na direção do coral, parecia imperturbável.
Após o recesso de outubro, Maria passava pelo corredor, havia muitas crianças lá, em uma roda, diziam:
— Lá vem o trem trocado—disse uma ex-amiga.
— Minha mãe disse que era pra ter nascido menino, e que o pai dela ganhou galhada! — Riam e falavam alto.
— Cuidado é menina macho, vai bater em você e coçar o saco! – Gritou um dos novatos.
Maria ouviu tudo, pegou garota que havia falado sobre seu pai e jogo-a no chão, começou a bater, dava socos carregados de raiva e usava toda sua força. Apesar de maior, a oponente ficou presa em baixo de Maria, que havia usado os joelhos para lhe travar os braços, uma roda de crianças se formou, todos queriam ver, ninguém se atreveu apartar, a garota não conseguia se defender dos socos. A inspetora abriu espaço na multidão e as separou, consegui ver Maria tremendo com as mão sujas de vermelho, a oponente estava no chão, com o rosto vermelho também, não distingui o estrago feitos pelos socos. Foi a primeira vez que chamaram a mãe de Maria à escola. Quando retornei pra casa todos sabiam do acontecido.
— Não quero te ver perto daquela menina nunca mais! — minha mãe gritava — Disse que ela não batia bem, sô. Soube que brigou feito menino mesmo! Uai como pode ninguém fazer nada… deve ter um lugar pra gente que nem ela.
Mãe resmungou sobre o assunto o dia inteiro e repetiu para meu pai, na hora do jantar. — Todos os adultos deviam estar fazendo o mesmo que ela.
Uma semana após e Maria não dava as caras na escola, também não os via na varanda. A notícia da briga se espalhou rápido, todos tinham uma opinião sobre o ocorrido, os adultos falavam do assunto em qualquer lugar.
— Ficou sabendo da menina que apanhou na escola? Foi de menino, acredita!
— Menino nada, foi a Maria do carrinho, sô! É tipo um menino mesmo né.
— A que apanhou levou 5 pontos na cara, num foi?
— Uai, ouvi dizer que foram 7 pontos e um olho roxo.
— Que nada, Maria quebrou os dentes dela. — Deve ter pegado o carrinho sem pedir!
— Gente, tipo ela, é só problemas. Minha esposa tem uma sobrinha assim, mora na capital com a amiga dela…
— Se fosse filha minha, levava no médico. — Deve ter um trem pra concertar ela, algum remédio de cabeça.
— Não deviam deixar ela perto das outras garotas. Sabem como é né?
Fiquei perdido, não sabia o que pensar, ouvir falarem assim desse trem todo, era como se não fosse de Maria, a catarrenta, minha vizinha, mas de outra pessoa, uma ruim. Quando retornou à escola, não houve mais bibip, músicas ou piadas, agora tinham medo dela. Nos intervalos, sentava atrás da cantina com carrinho. Em finais de semana e feriados as vezes à via num canto de praça, na sua varanda, ou dentro de algum dos galpões abandonados, eram velhos, sujos e ratos enormes moravam lá, as crianças tinham medo de entrar. Quem passava pela rua e olhava na direção das janelas quebradas, poderia ver Maria sentada no chão, com o carrinho nas mãos.
— Já viram no galpão?
— Não uai, o que tem lá?
— A menina do carrinho tá sempre lá sô, ontem levei um baita susto quando passei e vi.
— Assim não leva as outras pro caminho errado!
— Outro dia vi eles no canto da praça… ela olhou pra mim de cara feia. — Não gostei.
— No final da tarde de quinta, também vi ela lá!
— E eu que até sinal da cruz fiz sô!
Relatos das aparições Maria e o carrinho, viraram moda entre crianças e adultos. Diziam que à viam até de madrugada e que eram mau agouro. Em dezembro ela parou de frequentar a escola. Um novo desafio foi lançando: “ quem teria coragem de entrar nos galpões e chamar por Maria”, a criançada fez dele a nova brincadeira favorita, assustavam uns aos outros, e saiam gritando certos de ter visto vou ouvido biibiiip.
— Viram só? Sou muito corajoso corri nos três galpões, mesmo com ela atrás de mim…ufaaa!
— Viu ela, e o carrinho?
— Não, corri sem olhar pra trás, desviei dos pingos de sangue!
— Sangue?— Disseram em coro, — assustados com o relato que ouviam.
Os corajoso contavam suas histórias , na escola, na praça ou mesmo na minha rua.
Fazia muito tempo que eu não via Maria ou seus pais, parecia que a ausência deles os fazia ser mais lembrados, — viajaram para cidade, — tentei me convencer disso.
As festa de fim de ano mudaram o foco, no início de 94 ninguém falava de Maria com o carrinho, nem de sua família, as crianças pararam de frequentar os galpões.
— Mãe? Sabe quando Maria volta? Parece que não tem ninguém lá, não vi mais a tia no mercado.
— Não sei nada desse povo uai! — Toma logo seu café, uai!
Não posso precisar quando Maria e o carrinho foram embora, em Março de 94 uma nova família se mudou para a residência, foi a certeza de que Maria não voltaria mais. As vezes surgia algum relato da aparição dela, e criaram várias versões do seu desaparecimento
— Sabe que fim levou a menina do carrinho?
— Ouvi dizer que os pais mataram ela, lá nos galpões e fugiram de noite. Os ratos acabaram com o resto sô!
— Atrás da igreja tinha gente falando que à levaram para o hospício.
Versões infantis eram sempre mais assustadoras, já os adultos diziam:
— Os pais separam, o caminhoneiro percebeu o galho e a mulher foi embora com vergonha.
— E Maria, uai?
— Mandaram pra capital, a tia ficou de criar.
— Tem base esse trem não!
No final desse mesmo ano, meus pais decidiram virar, “ povo da cidade”. Mas somente em 2020 passei a sentir vergonha, da minha participação na história de Maria.