Leia o Conto “Prometeu, Justiça e outros mitos”, terceiro lugar no Concurso de Contos do UniBrasil

Vamos conhecer o conto classificado em terceiro lugar no Concurso de Contos Dirce Doroti Merlin Clève? O texto “Prometeu, Justiça e outros mitos”, foi escrito pela autora Carolina Cunha Pereira Frutuozo.

 

Prometeu, justiça e outros mitos

O dia começou para ela como qualquer outro dia: sem novidades. Despertou de madrugada, com o coração apertado e um choro inoportuno que lhe tirou do sono para pedir passagem. Olhou no relógio, três da manhã. O estômago embrulhou ao vil toque da memória, e o coração começou a bater no ritmo angustiante do barulho de chamadas telefônicas não atendidas.  Hoje, foram sessenta toques vãos. Desligou quando percebeu que o número discado vibrava em algum lugar perdido da sala de estar. Ela sabia que a garota não iria atendê-la, a espertinha sempre deixa o celular em casa para fingir que desconhece o horário de voltar. Mesmo assim, ela sempre ligava no horário prometido. É muito tarde, e ela é jovem demais para não voltar. As vibrações do celular perdido, porém, acordaram o seu companheiro. Agora essa guria está encrencada! O homem apareceu com um semblante mais perturbado do que o dela, uma mistura sedação com ansiedade.

— É o horário que eu combinei com ela, João…

O marido sonolento procurou o celular oculto. Ao pegar o aparelho, desfez as notificações de chamadas perdidas e sorriu ao ver o rosto da adolescente no papel de parede.

— Eu não sei por que pagamos a conta desse celular todo mês…

— É importante que ela tenha celular, João…

— Ela não usa, mulher! E a gente usa cada vez menos também…

Para encerrar a discussão sem se exceder nas palavras, ela tirou delicadamente o celular da mão do marido. Tirar o celular de uma jovem, onde já se viu, deixe a guria! Ela só saiu para se divertir, uma hora ela volta. Já tem dezoito anos também, não é mais uma menininha. Besteira de pai e mãe ficar ligando desesperadamente.

— A Márcia parou de pagar o celular da filha dela. Cansou.

— Problema da Márcia, João! Eu não me canso. Esperei nove meses para ter a guria, e eu a esperarei quanto tempo for necessário, oras. Ela tem o tempo dela, acabou de entrar na faculdade. Deixa a menina.

— Não se cansa e também não descansa. Venha, vamos voltar para a cama.

Ela aceitou o convite de bom grado e deixou o telefone em cima da mesa. Fingiu tranquilidade diante de mais um atraso, e agora precisava fingir que conseguiria dormir. Ao deitar, desligou a mente para não ser acordada pelas memórias. O coração, porém, continuava ligando ininterruptamente para o mesmo número com um desespero rítmico e sistólico, pausando apenas por breves diástoles de esperança que brotavam do silêncio entre uma e outra chamada.

Acordou sem perceber que havia dormido. Ela não fazia ideia que horas eram. O tempo, que grande ilusão! Corre, volta, anda duas horas que parecem dois anos, anda seis meses que parecem dois minutos, e ela nunca, nunca sai do lugar. O relógio é apenas uma convenção banal de um presente contínuo infinito, um gerúndio avulso no tempo e no espaço. E ela continuava esperando. E a menina, demorando. Deve estar curtindo por aí com algum guri, só pode. Ou então, bebendo e esquecendo que tem mãe e pai. “Festando”, é assim que eles chamam hoje em dia. O dia já estava amanhecendo. O que essa menina deve estar fazendo, meu Deus, o que será que está acontecendo?

— Para de pensar na guria, mulher, ela está bem.

“Está”, ora! Como acreditar em um presente sem indicativos? Como é possível ter certeza de que ela está bem sem vê-la, nem tocá-la? O coração começou novamente chamar, oitenta vezes por minuto. Chamando, e ninguém atendendo. Besteira, às vezes ela até já chegou e a gente aqui se preocupando. Sem hesitar, calçou os chinelos e correu para o quarto da garota. Arrumadinho, do jeitinho que ela deixou quando saiu ontem, cada canto ecoando uma ausência que já começava a angustiar. No relógio, seis e meia. Essa guria definitivamente está encrencada! Tomara que ela esteja no quarto da irmã fofocando sobre os acontecimentos da noite anterior. Com passos rápidos, ela chegou ao quarto da caçula. Assustou-se ao encontrar uma mulher adulta dormindo na cama da sua menininha mais nova. Como o tempo passa, meu Deus! Ainda ontem ela tinha catorze anos. Está crescendo tão rápido que dá vontade de chorar. Logo, logo, é ela que estará dando trabalho, virando a noite sem dar notícias.

— Está tudo bem, mãe? – a voz sonolenta vinda da cama também não era mais infantil.

— Está, querida, eu só vim ver se a sua irmã estava aqui…

— Mãe, ela está bem. Ainda é cedo. Vai descansar, por favor.

Descansar. Verbo intransitivo, não precisa de mais nada para lhe dar sentido. Conceito ridículo. Sempre precisamos de alguma coisa, e nesse caso, ela precisa da guria para conseguir sossegar. O coração concordou, recusando-se a parar de chamar a garota a noventa, quase cem vezes por minuto. Ela deve ter dormido na rede da varanda, chegou bêbada e ficou com vergonha de entrar. Ou na edícula, talvez? Trouxe um namoradinho secreto e não queria que o pai descobrisse. Já sei, vou fazer um café fresquinho! O cheiro de café fresco sempre faz a guria brotar de onde quer que ela esteja. Em poucos minutos, uma, duas, três, quatro xícaras cheias, o marido e a caçula apareceram, o cheiro por toda a parte… e a guria não estava em lugar nenhum. A boca amargou. O coração esfriou mais rápido que a xícara esquecida na mesa. Alguma coisa está acontecendo… as chamadas perdidas do coração dispararam uma angústia profunda. Por que ela não está respondendo?

— Deve ter dormido na casa da Mariana… – o pensamento saiu pela boca, em voz alta, para convencer não apenas a si mesma – …quando eu te levar à escola, eu passo lá para ver.

A caçula desviou o olhar e suspirou entre goles de café. Certamente sabia de algum segredo da irmã e não queria contar.

— Ela não está na casa da Mariana, mãe.

Cem chamadas por minuto. Ela não desgruda da Mariana, impossível.

— Pois me passe o telefone da Mariana ou da mãe dela que eu vou confirmar.

— Eu não tenho o número delas, mãe.

Decidiu procurar no celular da garota. O número discado não existe. Amizade hoje em dia é assim, não sabe nem o telefone da pessoa e já vai para uma festa junto. Essa guria está em apuros. Não vai sair nunca mais.

— Eu vou procurar o facebook da Mariana…

— Mãe, esquece a minha irmã, está na hora da minha aula! – a garota protestou contra a ideia de maneira ríspida.

Ela acatou a ordem da caçula, mas depois iria fuçar no facebook da Mariana. Ora, virar a noite fora de casa, não estou reconhecendo essa guria! O que ela está pensando? Entrou no carro, e quando percebeu, parou em frente à universidade e a caçula desceu. Faculdade? Ontem mesmo ela tinha catorze anos! O tempo está passando, a pequena está crescendo, já está estudando junto com a irmã, que loucura. Na ausência da mais nova, ela buscou a Mariana nas redes sociais. Casou mês passado? Nem convidou a minha guria, olha só. Também, com uma barriga dessas, tinha que casar logo mesmo. O chá revelação diz que é menina. Bruna, o mesmo nome da guria. Perdeu uma perna? Meu Deus, que horror, quando isso aconteceu? Vinte e oito anos? De repente, o rosto corou, ardeu com o tapa que a realidade lhe deu. Até ontem, ela tinha dezoito! Mas… se a guria tem vinte e oito, a caçula tem vinte e quatro? A confusão lhe deu náuseas. A realidade lhe bicou o fígado e o coração se desfez. O mundo está escorrendo, escapando de suas mãos? Nas ruas da cidade tudo continua lentamente, somente ela está enlouquecendo? Somente ela está presa no gerúndio, em uma areia movediça verbal que não lhe deixa ir a lugar nenhum? Após deixar a caçula, ela dirige até a praça. Todo santo dia. Há tanto tempo que já nem lembra quando começou. Mas, parece ontem. As coisas não mudam, o futuro nunca vem. O coração está sempre chamando, cento e dez por minuto. A praça estava vazia. Antes, era tão cheia de gente empática, gente que transformava a angústia em manchete de jornal, livro, filme. Abutres. Aproveitaram-se do que restou de sua alma e partiram, deixaram seu coração aqui, em pedaços, para se regenerar sozinho. Abandonaram-na, condenaram-na a pagar constantemente por um crime que ela não cometeu. E ela está pagando no gerúndio, pena perpétua que renasce a cada dia. Agora, era hora dos serviços à comunidade. Cumprimentou as poucas senhoras que lhe esperavam e armou a tenda.

— Como você está, querida?

— Caminhando…

Indo, lutando, aceitando, recuperando-se. Eram as alternativas que ela ouviu das demais senhoras. Ela, porém, ainda estava procurando a filha. Até que, em um mar de fotos velhas de um painel de lona, encontrou o rosto da guria. Menina, tu já tens vinte e oito e ainda tens esse rosto de menininha! Deixou um beijo demorado nas bochechas frias e plásticas da foto, e o beijo lhe puxou algumas lágrimas dos olhos, que escorreram sem que ninguém impedisse. Pelo contrário, os que passavam por ela lançavam olhares com certa reprovação. Porque eles acham que já faz tempo, eles acham que já passou. Não passou, meus queridos, foi ontem! Foi noite passada! Minha guria ainda não voltou. Meu coração ainda chama, sem resposta. Entende?

— Eles não entendem, querida… – uma das senhoras ousou frear outra lágrima que brotava. Em silêncio, fez sinal para que os trabalhos começassem.

Hoje, o trabalho era fazer crochê para recém-nascidos carentes, e as roupinhas logo ficaram prontas. Ela só tecia em rosa, com o fio de memória que lhe conduzia à lembrança de quando teceu as roupinhas da guria há muitos anos. Nós de saudade, emaranhados de emoções, até tudo tomar forma de criança e devolver ao mundo a presença da filha. Só Deus sabe quantas filhas ela já teceu e distribuiu por aquela cidade! Quantas filhas suas fantasiaram as filhas de outras mães! Mas, no fim, a guria continuava abstrata e distante, e ela continuava sendo uma Penélope inútil, tricotando memórias que o tempo desfazia rapidamente. Ao fim, as senhoras juntaram as doações e desfizeram a tenda sob os olhos perplexos de quem não queria que elas estivessem ali. Amanhã seria a mesma coisa. E depois de amanhã, e depois, e depois, caminhando no tempo sem sair do lugar, seguindo sem chão e sem mais nada. Sempre no gerúndio, lembrando e esquecendo, fazendo e desfazendo, parando no tempo e envelhecendo. Até hoje, ela continua não entendendo. E sempre pagando por um crime absurdo, por um fogo idiota pelo qual ela não foi responsável.

De volta para a casa, sem querer, o carro lhe conduz à Rua dos Andradas novamente, e amanhã ela irá novamente, como tem ido há mais de três mil e quinhentos dias. Já são quase duas da tarde, a guria ainda não voltou. Será que ela vai voltar? Será que algum dia o tempo vai andar para esse futuro poder chegar? Impossível, pois tudo foi ontem. Ainda é ontem! E, ao mesmo tempo, é um dia distante. É uma memória incômoda, imóvel decadente. Uma fagulha de falha humana em um mundo cheio de semideuses. Semideuses! Não há mais gente no mundo? Ninguém que perceba que quem trouxe o fogo está no Olimpo, bem longe dos homens comuns? O mundo não mudou nada desde a vez em que um prisioneiro foi crucificado injustamente e ninguém fez nada além de lavar as mãos? Parece que o mundo não muda. Está no gerúndio, sempre julgando, processo infinito que avança sem sair do lugar.

Ao contrário de como começou, o dia terminou cheio de novidades. Ela descobriu que a caçula já é mais velha que a guria. Que a Mariana já casou e está grávida. Que o quarto dela está se esvaziando, o celular dela nunca vai atender as centenas de chamadas. Que naquela noite a filha estava encrencada, em apuros, e não saiu nunca mais. Que ela não reconheceu a guria. E que, até hoje, ela não sabe o que a filha estava pensando, ou se ela está bem agora. Já se passaram dez anos que ela saiu para se divertir. Mas ainda é ontem! Ela e a justiça estão no mesmo lugar: esperando. Mas, às três da manhã, ela vai acordar novamente sem se lembrar do fogo, sem se lembrar dos deuses vis, nem do seu coração dilacerado. E vai protagonizar, no gerúndio, a epopéia mais absurda da mitologia brasileira: o mito da justiça.

 

 

 

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