Leia o conto premiado em 1º Lugar no Concurso de Contos Dirce Doroti Merlin Cléve

Chegou a hora tão aguardada! Vamos conhecer o conto que ficou em 1º lugar no Concurso de Contos Dirce Doroti Merlin Clève!

 

Leia o conto “Domingo de Ramos”, escrito pela autora Carolina Severo Figueiredo.

 

Domingo de Ramos

 

Lucas ia andando, segurando um ramo de palmeira. O povo ao redor andava junto, solene, acompanhando o carro de som que amplificava a voz do padre:

– Quando se aproximou e viu a cidade, Jesus chorou sobre ela e disse: “Ah! se tu conhecesses também, ao menos neste teu dia, o que à tua paz pertence! Mas agora isto está encoberto aos teus olhos.”

Apesar da narração que o padre fazia e a pretensa força de sua mensagem, Lucas estava incomodado com a microfonia. A palavra do Senhor era propagada por um Vectra 98 branco, esfarrapado, com a lateral esquerda amassada e acinzentada provavelmente pelo esbarrão bêbado no muro de alguém. Dentro dele, um homem meio gorducho palitando os dentes, despreocupado com a ocupação, pensando em qualquer outra coisa. A caixa no porta-malas emitia um ruído baixo mas desagradável, daqueles sons que incomodam pela espessura, irritante como chuva fraca. O padre parecia não se importar. Era um velho magro, alto, com uma careca na aréola da cabeça que certamente era pré-requisito do ofício. De longe Lucas não sentia, mas sabia que o velho padre tinha cheiro de Kaiak, o que causava uma confusão mental na cabeça de quem ia se confessar. Não parecia certo um homem da idade dele ter cheiro de pré-adolescente. Lucas torceu o nariz e apertou o ramo na mão, tentando acreditar que estava sendo abençoado com as palavras que saíam do Vectra.

Um dia, há muito tempo atrás, Lucas acreditou de fato na igreja. Era uma criança que tinha legítima fé, ia com seus pais todo domingo na missa e achava que aquele era um dos seus momentos mais preciosos em família. Na verdade, não tinha muitos momentos de proximidade com os pais. A mãe era uma dona de casa triste e quieta como um fantasma. Mas o pai tinha um impacto maior nele, por algum motivo. Era uma sombra assustadora que pairava em casa depois do horário comercial, austero. Não ria de nada a não ser de alguém caindo no chão. Criou Lucas com a frieza de um bicho rasteiro, sumindo nas horas em que ele chorava por medo de um pesadelo ou chegava feliz com uma nota boa em Geografia. Não brincava, não sorria, não brigava. Só existia, metálico e silencioso. Os domingos eram especiais porque significava que essa frieza era, naquele dia, o modo canônico de ser. A mãe e o pai ficavam solenes e ele também. Nos domingos, os três caminhavam até a missa com o mesmo jeito que o pai vivia todos os dias. Lucas passou a admirar essa austeridade, e foi crescendo com o corpo moldado de metal, cobre, zinco. Quando viu por si, o sorriso não combinava mais com seu rosto.

Mas a igreja continuava lá e a procissão ia se encaminhando a ela. Apesar de ter muitas vezes questionado sua importância, no fundo a igreja se parecia com ele: já tinha visto dias melhores. Era amarela e branca por fora, em estilo açoriano, pequena, com uma singela torre do sino à esquerda. Ostentava uma cruz enferrujada e meio quebrada no topo. Nos fundos, um cemitério simples onde quase toda a família de Lucas jazia. Sua mãe, seus avós, parentes distantes em túmulos de pedra, fotos velhas com gente séria de terno, fotos recentes com gente vestindo camisa de time. Nomes apagados, nomes escritos com o dedo em cimento fresco, nomes lapidados em mármore fino. Os mortos já ouviam o cortejo se aproximando, silencioso se não fosse a voz do padre no microfone e o motor do carro, as pessoas todas levando ramos de palmeira. Algumas, emocionadas, fechavam os olhos quando um versículo mais impactante era lido e sussurravam “amém, amém”. Outras caminhavam preocupadas com a irregularidade das pedras no chão e apertavam a mão da criança que levavam, sussurrando algo como “pelo amor Augusto, puta que pariu fica quieto!”. Lucas se irritava com a microfonia e refletia, como todos os anos, o porquê de ter escolhido participar do cortejo e não ter ido direto à missa, que iniciaria na sequência.

Ao chegar na igreja, a procissão se mesclou às pessoas que já esperavam por ali. O cheiro de pedra úmida das poucas escadas que subiam até a elevação de entrada do lugar, se misturava ao cheiro das folhas de capim-limão e eucalipto que ornamentavam todo o santuário. Entrou primeiro o clero, vestido de branco e vermelho, levando turíbulos, velas, incensos e as longas folhas de palmeira que o povo atrás também carregava. Logo atrás veio o padre que, antes de subir as escadas, havia deixado o microfone com o homem que dirigia o carro de som. A acústica do espaço era seu lugar comum, apesar de usar, também ali, um microfone que pertencia ao sacerdócio e que o coroinha – um pivete de 15 anos com acne e um sorrisinho que escondia os pecados nunca confessados – rapidamente lhe entregou ao entrar na igreja. O padre com cheiro de Kaiak agora contaminado pelo suor, pelas ervas e pelo incenso,  prosseguia:

– Está escrito: A minha casa é casa de oração; mas vós fizestes dela covil de salteadores. E todos os dias ensinava no templo; mas os principais dos sacerdotes, e os escribas, e os principais do povo procuravam matá-lo…

Lucas entrou junto dos que vinham com ele. A igreja estava repleta de fiéis de todas as idades e classes, e o espaço, todo decorado com os ramos, parecia um pouco a tentativa de uma urban jungle sem variedade de espécies. Ele sentou próximo à saída, para dar a chance de escapar sem chamar atenção caso sua consciência, ainda afetada pelos anos de fé inquestionada, permitisse. Ao seu lado sentou um homem de uns 80 anos, respirando ruidosamente pelo nariz apinhado de rosácea.  Ergueu as mãos na parte da frente do assento, onde se apoiam os cotovelos nas orações. Suas mãos eram peludas, grossas, e tremulavam não de nervosismo, mas devido aos tremores essenciais que o acometiam desde a meia idade. Era o pai de Lucas.

– Pai? Meu Deus, não te vejo desde…

– Já faz uns 15 anos, respondeu o velho com a voz gutural de quem fumou a vida inteira.

– Pois é, eu… Eu sempre venho aqui. Não sei mais porquê, na verdade. Acho que porque o senhor e a mãe me ensinaram. Mas hoje… enfim. O senhor está bem?

– Bem eu não diria, mas vou viver mais um pouco.

A provável falta de interesse do pai deixou Lucas com um princípio de irritação muito familiar.

– O senhor voltou a morar aqui?

– Não, continuo na serra. Vim visitar o cemitério. Hoje tá quente, né.

– Sim… Eu…

Engoliu a contragosto o que ia dizer e olhou o pai de soslaio. Apesar do calor, o pai vestia uma calça de alfaiataria pesada e um sapato surrado de couro, uma camisa bege de botão com um suéter de lã verde sem mangas por cima. Lucas estava de camiseta e calça jeans, vestia um tênis novo da Nike que mostrava que sua classe havia ascendido desde o início da vida adulta, que já havia passado há uns 20 anos. Ambos evitavam se olhar diretamente. A missa já iniciava, uma mulher começou a tocar o teclado desafinado do altar e o povo se levantou para o início da cerimônia. Os dois se levantaram e entoaram envergonhados a canção de Hosana Hei, enquanto o padre benzia os ramos de palmeira com a fumaça do turíbulo. Nenhum dos dois ergueu seus ramos como faziam os outros fiéis, chacoalhando pra lá e pra cá enquanto cantavam de olhos fechados. Pai e filho sentaram quando a música acabou, sem se olhar, incomodados com a presença um do outro.

Lucas olhou então pra si mesmo. Suas mãos já tinham o princípio dos tremores herdados, as pernas magras e a postura desajeitada eram iguais às do pai. Se reconheceu naquele homem. Tinha as sobrancelhas sempre retesadas, a boca acostumada a estar fechada, sem emitir riso, choro ou conversa. Soltou o ramo no colo e olhou para baixo, alheio à missa, reparando como os pés dele e do pai se portavam de forma semelhante, inquietos. Sentiu na cabeça os cabelos ralos e pretos, com a calvície de contornos idênticos à do velho ao seu lado, diferente apenas na coloração artificial que fazia porque não admitia ser grisalho aos 45.

Passou a mão no rosto engordurado pelo calor e se sentiu mal, com o estômago retorcido. Havia se esforçado a vida toda para se diferenciar do pai: estudou Administração e gostava de literatura, tinha ido trabalhar com tecnologia para não ser funcionário dos Correios, escutava música ao invés da CBN. Nunca tinha reparado que, apesar da tentativa de diferenciação nesses âmbitos da vida, a biologia ia contrária ao seu esforço. Com o passar dos anos se tornaram muito parecidos fisicamente e, agora, Lucas notava que seu temperamento era semelhante também. No fundo, o hábito de ir à missa e a tristeza congênita eram o maior legado que seu pai havia deixado. Sentiu vontade de chorar e apertou o ramo no colo. Era de novo um menino intimidado pela sombra rígida do pai.

Quando a missa acabou, os dois se levantaram e tiveram um ímpeto de se abraçar, que rapidamente se dissipou. Trocaram o primeiro olhar em 15 anos. O pai deu duas batidas fortes nas costas de Lucas e se dirigiu à porta.

– Manda um abraço pra família.

– Pode deixar. Boa viagem de volta, pai.

O velho deu uma tossida rouca e desceu as escadas junto com algumas outras pessoas, virando à esquerda em direção ao cemitério. Lucas ficou parado ali um tempo com os olhos marejados. Dessa vez o corpo tremia um pouco a mais do que a condição médica previa. Não tinha se emocionado pelo encontro, mas pela súbita percepção de que estava se tornando o próprio pai, um homem assustador, uma estátua de pedra e sal a que desejou se distanciar e que, sem querer, havia se percebido um duplo. Seu peito apertou como num soluço. Suspirou um suspiro longo e dolorido, pegou o ramo de palmeira que estava no banco e foi caminhando lentamente pra casa.

Ao chegar, Lucas abriu a porta num rangido e deixou os tênis no capacho. O piso de linóleo estava limpo e cheiroso, e o aroma do almoço recém-feito encheu seus pulmões. Desde o quintal já conseguia ouvir uma música animada e instrumental que ecoava da própria casa, provavelmente a trilha sonora de algum filme dos anos 80 que a esposa adorava, uma mulher cinéfila e engraçada que o havia conquistado pelo bom humor. A esposa estava deitada no sofá, desenhando alguma coisa num papel qualquer, com os pés nus balançando com a música. Com a entrada do marido, ergueu os olhos e deu um sorriso maroto pra ele, raramente retribuído. Lucas fechou a porta e ouviu passos ansiosos descendo as escadas, correndo. Os dois filhos, um menino de 10 e outro de 8, correram pra abraçar o pai que mal havia pisado dentro de casa, falando alto de saudade e empolgação por algum desenho animado que estavam assistindo no quarto. Seus olhos se encheram de lágrimas de novo, mas dessa vez era diferente. Ele apertou os dois nos braços, deixando cair o ramo no chão.

– Como foi a manhã de vocês?

E sorriu, alegre.

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