O êxodo inicia todos os dias ― (em geral, mas) não apenas úteis ― por volta das 4 da tarde, quando as ruas vazias dos bairros residenciais de classe média-alta são tomadas por mulheres silenciosas e solitárias que não os habitam.
Muitas vezes, inclusive (ou na verdade), o lugar para onde vão depois (se não suas casas, uma segunda jornada) é longe. Não longe o bastante pra tornar as distâncias intransponíveis ― até mesmo porque isso não é uma opção ―, mas o suficiente para que sintam ― e façam ― muita falta.
Elas são negras, brancas, altas, baixas, gordas, magras, têm cabelos curtos ou compridos, olhos escuros ou claros, usam maquiagem ou nenhuma, preferem calças ou saias nas canelas, e do lado de fora pouco há em comum para além das mãos calejadas e das costas arqueadas pelo peso ― literal e metafórico ― que carregam em si e em suas bolsas e sacolas.
Solteiras, casadas, separadas, divorciadas, sem filhos ou “desculpa, mas não vai dar para trazer o seu pequeno; sabe como é, né, meu marido não gosta de criança, e o cachorro também não…“; por motivos distintos, ‘sororidade’ é uma palavra que não faz parte do vocabulário das patroas e nem do delas.
Seus passos não deixam marcas no asfalto quente das ruas que, mesmo ricas!, nem sempre têm calçadas; afinal, nem todas elas foram feitas para andar. Muitas, como essas, parecem servir apenas para o tráfego de máquinas ― ainda que dentro delas batam corações, tão maquinais quanto.
Mas esses mesmos passos de suas sapatilhas, ou o arrastar de chinelos de dedo, igualmente em silêncio e solidão, são perceptíveis aos ouvidos mais apurados; se fecharmos os olhos dá pra ouvir o leve raspar de preguinhos que, não raro, seguram suas tiras ― e que, ora ou outra, acabam fazendo falta nas tábuas de móveis ou barracos.
Ouvidos atentos hão de perceber ainda alguns outros poucos sons: a música furtiva que escapa de seus fones de ouvido, uma mensagem de áudio do Whatsapp ― combinando outra diária, ou avisando que “a mãe já tá indo” ―, ou uma divagação entredentes, sobre a dureza da vida ou um desaforo entubado já de manhã.
São poucas as que caminham em ritmo lento; nem o sol queimando o coco e nem a chuva (nessa cidade, constantemente intensa) atrasam seu andar ― o qual, não raro, ruma para algum ponto de ônibus.
Relativa sorte tem as que podem pegar os que vão pros terminais; as conexões são mais rápidas e saem mais em conta; “quando precisa pagar mais de dois VTs a patroa reclama” ― enquanto sai com seu carro importado, ocupado por ela, só. Carona nem pensar!, mas “a maria trabalha aqui há tanto tempo que é quase como se já fosse da família“.
Afinal, do lado de dentro, todas são movidas por motivos afins, por mais que elas mesmas não se deem conta e mal se cumprimentem enquanto marcham, sozinhas, em suas diásporas.
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Em uma quarta-feira tipicamente nublada, bem na meiuca da semana, às 04:15 da tarde, maria foi atropelada por um grande SUV ― grafite, porque Priscila queria “uma cor que passe uma impressão sofisticada“. O interior era em couro na cor caramelo, pois achava divertido pensar que seu Lulu da Pomerânia se perderia naquele fundo igualmente macio.
O impacto fez com que o pequeno cachorro caísse do banco, mas quase não amassou a lataria. Priscila, apavorada, viu pela câmera de ré o corpo amontoado no asfalto, mas só parou quando chegou em casa.
Segundo seu marido, dificilmente teriam problemas, pois não havia testemunhas nas ermas ruas, e imagens de câmeras poderiam ser “facilmente removidas“.
maria, acordada pela chuva que finalmente havia decidido cair, se levantou e continuou seu caminho até o ponto de ônibus, arrastando no chinelo o pé fraturado. Quando chegou em casa chorou baixinho no banheiro, pois não queria ter que explicar pros filhos mais essa humilhação.
O atendimento na UPA foi demorado, e o gesso que lhe colocaram só não pesava mais que o rancor resignando no peito. Foi a muito custo que conseguiu a indenização do DPVAT; uma merrequinha que mal valia dez diárias. Dificilmente conseguia ir nas sessões de fisioterapia, pois o horário coincidia com o expediente que dava nas casas; “assim fica complicado, dona maria, você precisa me ajudar a te ajudar. E você sabe que o INSS não vai te encostar tão cedo…“.
Semanas depois, de dentro do carro com bancos aquecidos, enquanto voltava da aula de pilates, Priscila gelou quando viu maria sair mancando da casa da vizinha, e soube que fez bem em recusar a recomendação do grupo da rua; “ela tá com um probleminha pra caminhar, mas é caprichosa e quieta; não fica se metendo na nossa vida, sabe? Não incomoda nadinha, e faz hora extra sem reclamar“.
maria não reparou no carro, e, mesmo que tivesse visto, não o reconheceria; seu olhar estava treinado pra reconhecer rápido o verde, o laranja, o vermelho e o número de articulações de um ônibus, mas não tons de cinza ou modelos de esportivo.
Além do mais, já estava na hora da marcha, e ela sabia que, com o pé agora permanentemente torto e latejante, precisaria apressar o passo se quisesse chegar em casa antes do jornal local das 7; sentia algo próximo de paz quando via notícias de crimes de trânsito resolvidos, ou histórias de gente humilde vencendo na vida.
Autora: Maritsa Kantikas