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A última geração

Milla Sampaio           

 

A luz do sol cintilava na marola de início da manhã. Não dava para ver sua casa dali. Na verdade, nunca vira banco de areia naquela praia, mas era a mesma que visitava diariamente em seus sonhos. Ali o vento soprava sem música e não se ouvia canto de pássaros. Como se debaixo d’água, o tempo parecia parado.

            Sílvia avançou seus pés enrugados e nodosos pela areia molhada.

            O ar fresco encheu seus pulmões enquanto o mar avançava devagarinho.
Há quanto tempo estava ali?
Como chegara no banco de areia se sua roupa estava seca?
Ela ouviu um som e se virou para o horizonte infinito da beira do mundo, onde o mar encontra o céu. Uma jaula quebrava a linha limítrofe rosada. Sílvia se preparou para acordar, como acontecia sempre após o vislumbre da jaula.
Seus rins não aguentavam dosagens mais fortes de antidepressivos, então Sílvia abraçava os sonhos estranhos e recorrentes que se transformavam em olheiras amarronzadas em seu reflexo no espelho.
Dessa vez, ela não acordou. A jaula de metal continuava ali. Lembrava das que via chegando em seu vilarejo no sertão, com o circo, na época em que pouco se pensava sobre sofrimento de quem não tinha voz. Talvez pouca coisa houvesse mudado no fim das contas.

            Silvia deu um passo e percebeu uma corrente grossa e pesada que se prendia ao seu pé, vinda de dentro  do monumento deslocado. Ela cruzou o espaço ao som da corrente arrastando na areia e da marola, que se agitava minimamente com a energia do sol se fazendo dia.
A jaula não agredia sua visão, era apenas algo curioso. Grosseira, apesar de limpa. A areia nivelada em volta denunciava que a estrutura era nova ali, estrangeira. Mesmo que Silvia a avistasse quase diariamente, nunca chegara tão perto.
Estendendo a mão, percebeu que o metal era frio e o interior, escuro. Sílvia respirou fundo e sentiu o cheiro do animal antes de vê-lo. Vê-la. Uma primata amedrontada de olhos enormes e testa franzida. Aquele medo sem raiz visível atravessou as barras da jaula e começou a inundar o corpo de Sílvia como a maré que subia.

            Em resposta, suas mãos ficaram escorregadias e trêmulas. Seu coração se acelerou e sua boca secou. Sílvia se sentou sem se importar com a lâmina d’água molhando suas pernas.

            Volta pra orla menina, maré sobe mais rápido que desce. Sua mãe soou em memória distante. Tão longe. Tempo uma medida de espaço.

            Silvia estendeu um braço para dentro, convidando o animal a se aproximar, se perguntando porque ela estava ali, presa?

            A primata andou em sua direção a passos pequenos e trêmulos. A um braço de distância, ela parou, olhando de baixo para cima, e esticou a mão. Os dedos peludos tocaram os seus.

Sílvia odiava aquele teto com textura de pipoca. Poeira se acumulava nas estalactites minúsculas e enfatizava o relevo horroroso. Precisava de mais uma mão de tinta, ou de uma reforma completa. Ele continuaria daquele jeito por algumas décadas. E ela, forçada a dar de cara com aquilo, a acordar para ele todo dia.
Seus pés, inchados e doloridos, reclamaram da primeira carga de peso do dia. Os calçados ortopédicos gastos repousavam junto da cama. Katarina ainda dormia. Ela só fazia dormir ultimamente. O relógio inteligente de seu pulso marcava seis da manhã. As máquinas que faziam parte de Katarina roncavam.
Depois de se arrastar até a cozinha, Silvia pegou as canecas rachadas com fotos dos seus finados netos, colocou pó de café na cafeteira e pães na torradeira.

            Deveria economizar no café, o preço só fazia subir.
Ao som do borbulhar da água, Sílvia seguiu para o banheiro com passos ligeiramente mais despertos. Ela sempre estranhava a imagem enrugada e rígida que a encarava no espelho da farmácia, acima da pia. Ela vestia aquele rosto, ele não a representava. Sílvia costumava sorrir com malícia para qualquer coisa. Mas seu corpo estava cansado e chegando ao fim dos dias produtivos. E sua mente continuava lá, atenta, criativa, enjaulada.
A primata a olhou de dentro do espelho.

            Sílvia abriu a farmácia com violência, tentando espantar o susto. Talvez sua mente não estivesse tão boa assim. O pensamento de inadequação ao tempo, um resquício da mania de grandiosidade que teve um dia.
Calças moletom, blusa vermelha e o colete do mercado. Não havia roupa mais sem graça, na sua opinião. O colete se estirava por cima de sua barriga protuberante. Ela mal conseguia fechá-lo. Daqui a algumas semanas seria impossível. Daqui a algumas semanas, ela estaria como Katarina, deitada.
Café da manhã tomado e cabelo prateado escovado, ela beijou a cabeça de sua amada e se encaminhou para o carro.

            Todo dia uma despedida. Deveria estar pronta para isso, para deixá-la ir, mas toda manhã, seus olhos se enchiam de água e seu nariz ardia na caminhada curta e lenta até a caminhonete. Enquanto dirigia lentamente até o mercado, Sílvia fazia sua prece matinal. Nela, pedia que Katarina ficasse mais um pouco.
Nunca fora religiosa. Passou a juventude dando palestras pelo mundo sobre a corrupção na sociedade causada por instituições de fé. Agora, com seus filhos e netos incinerados, com o amor de sua vida servindo de incubadora, com o corpo se desintegrando no custo de manter outro dentro de si, Sílvia rezava. Ela não se importava com o destinatário.
Parou a caminhonete na vaga dupla na frente do mercado e deixou seus soluços amarrados em seu peito se acalmarem.

            Enxugou os olhos no lenço que ficava pendurado no painel do carro justamente para esse propósito. O bordado estava se desfazendo.
Sílvia foi direto para a sala de funcionários. Apenas Adalberto e Jonatas estavam lá. Pelos olhares suspeitos e vigilantes mal disfarçados, eles deviam ter sabido do que ela e suas colegas de trabalho começaram a fazer, ou a não fazer.

            Os donos, mais novos que ela, se achando garanhões em seus sessenta tantos anos de idade, resolveram marcar autoridade. Sílvia engoliu a careta ao vê-los e ofereceu um aceno curto.
Ela tentou marcar seu ponto e sair do lugar como se esquecida da rotina de violação.

            Adalberto a chamou de volta, a lembrando, balançando a injeção cheia de químicos anuladores da natureza.

            Talvez devesse fazer como Katarina e lutar. Talvez o estado vegetativo no qual a puseram como punição fosse melhor que essa tortura diária lenta e silenciosa.
Os dois homens cercaram seu corpo. Jonatas levantou sua blusa e Adalberto aplicou o remédio. O relógio no pulso de Sílvia apitou, indicando a dose recebida, passando a informação para o laboratório que controlava sua vida.
Talvez a pandemia devesse ter levado todos em vez de deixar só os velhos. O planeta não sentiria falta deles. Ela não se importaria em ser a última geração. Aproveitaria os dias tranquilos ao lado dos risos fartos e safados de Katarina.

            Libido era um luxo nessa idade, e seria aproveitado pelas duas em sua totalidade quando desse as caras. Amigas e amantes, elas aproveitariam os últimos segundos do planeta reflorescendo. Sentiriam o luto pela família que se foi antes, naquela ordem trocada trazida por um vírus. Sentiriam os corpos perecerem, os mercados esvaziarem, os carros quebrarem e as fábricas pararem. Elas sorririam diante daquilo porque estariam juntas e o fim se aproximaria. Elas morreriam de mãos dadas e seriam cobertas por plantas rasteiras que as transformariam em terra novamente.

            Se Katarina estivesse certa, talvez voltassem como flores, árvores, morcegos, golfinhos…
Sentindo os dois homens a encurralando, esbanjando a década de vitalidade que os separavam dela, Sílvia se lembrou porque se submetia. Katarina precisava de cuidado, ela também. Seria melhor engolir dor diariamente e proteger a dignidade das duas do que não terem controle sobre seus corpos presos à vida. Quem se rebelava, virava pedra-viva ou incubadora-morta, como Katarina.
Sílvia seguiu para a cadeira atrás do caixa e observou o dia passar. Poucas pessoas apareciam, o estoque estava quase vazio.

            Eram todo velhos. Um casal de senhores entrou sorridente, com um bebê no carrinho.

            Costumavam lutar pela mesma coisa, aceitação. Agora, eles podiam continuar. Foram normalizados como a nova cara da família tradicional. Era a semente deles que injetavam nas mulheres, fecundada com óvulos de pessoas mortas, mais jovens, as quais deixaram seu material genético repousando em geladeiras por qualquer motivo.

            Elas ganhariam nomes de ruas e avenidas, quando as crianças da primeira geração virassem adultos e começassem a reviver o planeta. Uma geração sem mães. Nenhuma aguentava o parto. Sílvia não tinha certeza se eles tentavam com afinco contornar essa estatística. Pelo bebê, ela sorriu para aquela família e engoliu o choro ao lembrar da sua, composta de afeto.

            Um dos senhores apontou para sua barriga sorridente, como se aquilo fosse escolha sua, como se fosse um presente viver por aquela criança que funcionava como uma bomba relógio dentro do seu ventre vencido.

            Ele perguntou quanto tempo faltava.

            Nem o bebê conseguiu fazer o sorriso permanecer em seu rosto. Sílvia respondeu oito semanas.

            Vendo sua face desfeita, eles se apressaram para ir embora.

            Adalberto já caminhava em sua direção para reforçar seus discursos sobre manter o ânimo no ambiente de trabalho. Sílvia balançou a cabeça algumas vezes, com olhos opacos, tentando fugir do som da voz dele. Se não precisasse alimentar Katarina, ela já teria desistido de trabalhar. Talvez tentasse a sorte na selva. Talvez parasse sua caminhonete na beira de algum parque ecológico, seguisse além das trilhas e se deitasse no chão, assistindo lentamente se fundir com tudo em volta. Virar terra, virar água.
O caminho de volta pra casa foi mais rápido. Sílvia trouxe um pote com morangos cortados. Teria que ajudar Katarina a comê-los. Talvez não tivesse sido uma boa ideia. Antes, Katarina ficava radiante quando comia morangos. Vê-la digerindo por um tubo, com sua ajuda motora para completar a tarefa, sem estar ali… não, não seria bom. Mas não se atreveria a comer a fruta ela mesma, então despejou o conteúdo do pote na caçamba de lixo antes de entrar em casa. Estava terrivelmente suja. Camadas e camadas de chorume se acumulando na superfície.

            Da última vez que tentou lavar a lata enorme, fraturou o pulso. Era a mão com a qual costumava proporcionar prazer para sua amada.
Sílvia se sentou ao lado da parceira inconsciente e a contou sobre o seu dia. Katarina gemeu. O som fez seu coração disparar. Há meses ela não emitia qualquer indício de vida. Enquanto aquela alegria caminhava dos seus ouvidos descrentes ao seu coração esperançoso e irracional, o relógio de Katarina começou a apitar. As máquinas logo seguiram em sinfonia.
Podia tentar reanimar a amada, provavelmente custaria seu outro pulso, mas poderia. Em vez disso, Sílvia se sentou na poltrona que tinha no quarto e a observou deixar a vida de longe.

            Em menos de dois minutos, a ambulância parou na frente e dois homens com a idade dos seus chefes entraram.
Eles sabiam que o bebê estava quase pronto, mas não sobreviveria à viagem curta até o hospital. A cirugia seria feita ali mesmo, sem cuidado. Aquele corpo era um armário de carne. Aquele corpo que a fez sair do seu por décadas. Aquele corpo que amou e conheceu de ponta a ponta. Aquele corpo que cuidou e acompanhou enrugar.
Katarina já tinha ido embora fazia um tempo, mas Sílvia ainda chorou ao ver o último pedaço dela partir.
Os dois homens não a deram atenção. Eles não se preocuparam em tirar Sílvia do quarto antes de começarem a violar o amor da sua vida, pela vida que teimavam em fazer existir.
Silvia saiu do quarto, da casa. Levou apenas os brincos preferidos de Katarina e um álbum velho de fotografias. Ela entrou na caminhonete, a qual por obra divina não estava presa pela ambulância estacionada na rua.

            O sol se punha. Foi bonito o longo trajeto pela estrada vazia.

            Sílvia estacionou o veículo na beira da primeira amostra de floresta que achou. Não eram muitas.

            Ela tirou a roupa, ignorando o vento frio da noite por vir. Pegou o colar e o álbum, e adentrou as árvores.

            Achando um pedaço de terra coberto por plantas rasteiras floridas, como em sua imaginação, ela se deitou.

            Então, Sílvia fechou as pálpebras encharcadas e cansadas, admitindo para o planeta que estava pronta, abraçando a dor que a partia ao meio, esperando encontrar a amada novamente ali de alguma forma, nas cinzas dessa vida ou nos grãos de areia da próxima.

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