Concurso de Contos: Confira quem é a vencedora do 1º lugar

Epifania

Débora Renata Noely Pereira de Souza

O mundo é dividido em dois: aqueles que respiram, crescem, e são feitos de carne e osso, e os demais que são hologramas.  Corpos humanoides e translúcidos que, brilhando com luzes azuladas e tremeluzentes, possuíam as feições de um rosto sem vida. Cada um deles programado para executar tarefas específicas de acordo com seu modelo de fabricação. Não se chamavam, por isso, Beatriz, Ernesto, Ana ou João, eram holograma vinte e três, cinquenta e dois, e número mil setecentos e setenta e nove.

“Iniciando verificação das válvulas de escape”, ditava número dezessete, repetindo as sentenças gravadas em seu sistema.

Cada classe de holograma tinha um ramo de trabalho; número dezessete era especialista em encontrar problemas nos maquinários, atravessando as latarias em metal, contornando as fiações e dando início aos protocolos de restauro em peças danificadas.

“Nenhum erro encontrado”, ditou outra vez, esquadrinhando o espaço fechado da máquina, iluminando-a com sua própria luz. “Sistema reiniciado.”

A máquina soltou um ronco grosso e chacoalhou. Dezessete saiu de seu interior e percorreu a sala de manutenção. O bipe agudo que soou dos interfones o fez flutuar até a porta e atravessá-la. Final do expediente.

O vai e vem no corredor naquele horário era o mais intenso e caótico. Os hologramas precisavam reagrupar suas partículas sempre que transpassados por humanos, em seus uniformes azuis dos trabalhadores. Não apenas um caso é recordado quando alguns deles se dissiparam demais, suas configurações apresentaram falhas, e se dissolveram no ar, desligados de todo o sistema.

Diz-se do número quarenta e cinco!

Do lado de fora, dezessete seguia em linha reta. As andanças que fazia pela cidade eram todas identificadas em seu sistema de rotas e, ao final do turno, elas indicavam o caminho até as cápsulas de energia, onde os hologramas eram recarregados para a manhã seguinte.

Ele atravessou carros, prédios, cachorros, e sofreu um baque. Sua luz vacilou um tom à medida que lampejava com a onda de choque. Seus olhões injetados de holograma pela primeira vez se abriram mais que o esperado, focalizando no que o acertara.

E a viu.

Holograma número dezoito parecia sofrer da mesma surpresa holográfica que ele. A luz de seu sistema piscava procurando se estabilizar; suas partículas tremulavam, inquietas.

“Erro de movimentação.” ditou ela, numa voz gélida e metalizada. “Queda de energia? Falha no sistema? Recarregamento?”

“Ordem restaurada” ditou dezessete, ainda de olhos bem abertos e brilhantes. “Causa de choque desconhecida.”

Chiados graves soaram de ambos os corpos luminosos: deviam seguir até suas sessões de recarga. Sem combinarem, se afastaram e flutuaram em direções opostas.

Diversos hologramas transitavam, atravessando uns aos outros, frente as cápsulas de energia. Nenhum deles parava ou possuía o olhar mais brilhante que dezessete.

Ele adentrou o alojamento e, pela primeira vez em toda sua existência, enquanto sua porta de metal se fechava, dispôs da nítida imagem do outro holograma em que se chocara.

Ao ser recarregado, na manhã seguinte, a linha do tempo de tudo que vira na véspera reaparecera em seu visor. Dezessete procurou por erros incomuns e não encontrou razão: suas visões eram sempre deletadas, e cada dia era o mesmo do dia anterior. Agora, o que deveria ser dia um, era dois. Para um holograma que nunca se lembrara, imagens de choques e brilhos insólitos salpicavam por seu sistema translúcido de informações.

Ele deslizou até o trabalho. Via com clareza as portas de vidro, os corredores largos e movimentados, e número dezoito. Ela estava lá. Deslizava pelas passagens como sempre o fazia até sua sala. Mas dezessete não reconheceu em seus sistemas que ele deveria saber daquilo. E para completar a primeira vez que se esbarrou, a primeira vez que se lembrou, ele realizou sua primeira perseguição.

Saiu da rota, forçando seu sistema a segui-la. Podia acompanhar sua luz distinta de longe, tanto que ela brilhava a seus olhos agora vívidos e exultantes.

E, uma vez mais, eles a fitaram bem abertos.

Número dezoito estagnou e virou, mirando-o com atenção; a face holográfica tremeluzindo incerteza: eles nunca viravam, deveriam estar sempre em linha reta.

Número dezessete sentiu algo como desconforto, como se o olhar dela fizesse sua luz falhar. Deslizou para frente, movido por uma força gravitacional lateral ou um imã invisível que o atraía diretamente a ela.

“Novo erro?”, perguntou dezoito, a voz mais audível, menos computadorizada.

“Não detectaram problemas em minha cápsula de energia.”

“Mesmo resultado.”

Os trabalhadores do prédio continuavam a exercer suas tarefas. Humanos conversavam, alguns os ladeando, olhando-os de esguelha antes de continuarem suas tarefas, semelhantes a cúmplices, em suas feições curiosas. Hologramas flutuavam, isentos a qualquer diferença. E os dois estagnados, intrigados, sem serem interrompidos. Todo o sistema cooperando com uma conversa que não deveria acontecer, que não sabiam como fazer.

Dezessete recorreu mais uma vez ao seu sistema de fala: códigos, energia, conduta, cápsulas, rotas, desligamentos, luz.

“Por que se virou?”, saiu de si, fazendo-o próprio bruxulear.

Número dezoito piscou.

“Eu senti”, respondeu. “Alguém me seguia.”

Dezessete, pela primeira vez, sentiu que conseguiria franzir a testa enérgica.

“O que sentiu?”

Dezoito titubeou, como se não tivesse codificação para responder aquilo. Então, flutuou mais baixo; seus olhões indo de lá para cá.

“Sua energia.”

Ela estendeu um braço, levantando uma leva de partículas em direção a dezessete. Não sentiram choque dessa vez, mas calor. A fusão de suas fontes mesclando-se em uma só, distinta e crescente. Dezessete a analisou. Seu brilho se intensificara, como se ela fosse formada pela fonte mais pura de energia. O formato de seu rosto azulado era delineado, vívido. Ele quase não podia ver, através dela, o corredor do outro lado. E por todo aquele instante, ele entendeu que não gostaria jamais de vê-la desaparecer.

“Vamos ser desligados”, ditou número dezoito. “As máquinas irão descobrir nossas falhas, estamos com defeitos.”

O nome do comando desligamento nunca causara a menor agitação nas partículas de dezessete, não entendia, porém, por que tamanha movimentação elas tiveram quando visualizaram um futuro com dezoito sendo desintegrada no ar.

“Não voltamos para as cápsulas.”

Dezoito se aproximou, como se não quisesse que fossem ouvidos.

“Como ir contrário as rotas?”

“Já fomos. Já estamos.”

Quando o expediente acabou, dezessete sentia sua própria luz o incomodar; seu corpo sem vida sofrendo de espasmos bizarros de tempos em tempos. Tudo isso continuou quando saiu do prédio e encontrou dezoito num canto afastado da rua. Uma sensação cálida por vê-la em sua completa forma fez luzir seus olhos.

Eles flutuaram até uma praça vazia. Seus sistemas de rotas apitavam. Eles se entreolharam, fascinados. Dezessete sabia que estava olhando para o melhor holograma já criado. E se questionava como nunca falhara antes e abrira seus olhos estáticos e injetados para a visão que tinha agora. Mesmo quando eles o desligassem e ele vagasse pelo ar até se transformar em nada, achava que nada poderia tirá-la de sua mente.

Dezessete sentiu-se estarrecido. Um conceito que nunca tivera contato chegara a si, fazendo seu peito brilhar numa profunda epifania, como se iluminado por um farol de certezas.

“Nada poderia tirá-la da mente.”

“Mente?” questionou dezoito.

Ela vibrou, exultante. Assim que o fez, o ar ficou mais audível, passando em lufadas entre suas partículas. Começaram a flutuar sem vontade própria, os corpos agitando-se em cores difusas.

“Estão mesmo nos desligando”, lamentou dezoito.

Dezessete concordou, abatido. Suas luzes refugiavam aos ares, dissolvendo-se em feixes menores e esparsos, afastando-se uns dos outros, indo com o vento.

“Vou me lembrar de você.”

Foi a última sentença de dezessete antes dele desaparecer. Todo seu sistema foi desfeito por sua cápsula, e ela mesma, enquanto ele se movia para o céu, se auto destruiu.

Com uma forte inspiração, Rafael despertou em uma mesa de trabalho. Olhou assustado ao redor, tateando a si mesmo. Sua mão encontrou pele, firme, quente. Sentia o próprio ar adentrar em si. Mas algo o incomodava. Uma dor tremenda no lado esquerdo do peito.

Ele levou a mão até lá e sentiu algo pavoroso explodindo em batidas aceleradas. Olhou espantado para baixo e reparou, bem no lugar, um número conhecido gravado no uniforme azul que usava.

“Acabou de acordar?”, perguntou alguém ao seu lado.

Ele olhou ao redor. Estava em um escritório, cercado de outros funcionários, todos com números gravados no peito. Ele focalizou naquele de quem falara consigo: quarenta e cinco!

Rafael arregalou os olhos, surpreso.

O homem, humano, de carne e osso, riu de sua expressão.

“É a melhor sensação de todas, vai ver.”, comentou ele. “Uma hora você está flutuando por aí, cheio de falhas, achando que vai desaparecer, na outra acorda como…”

Rafael deixou de o ouvir. Saltou de sua cadeira e correu pelos corredores do prédio. Parou para analisar cada holograma sem vida, imaginando observar mentes adormecidas, e cada humano radiante por quem passava; a mais pura extensão do que foram um dia.

Sentiu tanta dor quanto não julgava ser possível: esbarrara nas paredes, portas, mesas, até que se chocou com alguém. Ela também corria. Usava um uniforme da mesma cor, mas com um número distinto, um a mais que o seu. Tinha um brilho natural, como ele se recordava.

Rafael a tocou, firme, emocionado.

E pela primeira vez soube que estava vivendo.

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