Cautelares monocráticas do STF: uma mutação à Jellinek

Texto por Samuel Sales Fonteles e Clèmerson Merlin Clève

Introdução

Andam dizendo, por aí afora, que a Proposta de Emenda à Constituição 8, de 2021, que racionaliza decisões monocráticas do Supremo Tribunal Federal, traduz um backlash ou talvez um “ataque”. Trata-se de uma hipérbole, como tantas que infestam o debate público no Brasil. Sem exageros, argumentos não recebem atenção. Sem atenção, não são levados a sério. Para que sejam levados a sério, exagera-se.

A proposta é válida, limitando-se a explicitar o que sempre esteve no texto constitucional: o Juiz Natural para processar e julgar medidas cautelares, que suspendem atos do Congresso e da Presidência, é o Plenário do STF. Ou alguém duvida disso? Havendo interesse em um aprofundamento na literatura específica, sugere-se a leitura dos escritos do Professor Miguel Gualano de Godoy (UFPR).

Não se desconhece que, à medida que o tempo passa, maus hábitos são cultivados. A História Constitucional é pródiga em exemplos de práticas inconstitucionais que encontram um ambiente de permissividade.

No século XIX, publicistas alemães desenvolveram uma categoria denominada de “mutação constitucional.”. Diante de atos imperiais que infringiam a Constituição de 1871 (HESSE, 2009, p. 151), em vez de conformar a realidade à constituição, e com isto assegurar a sua força normativa, juristas como Laband e Jellinek escolheram justificar a conformação da própria constituição à realidade.

As mutações constitucionais descritas por Jellinek incluíam costumes contra constitutionem operados por instituições que se equivocavam quanto à interpretação constitucional (HESSE, 2009, pp. 155-156). Nessa concepção complacente — palavra que, aqui, migra do contexto médico –, práticas institucionalizadas dos Poderes, quando sedimentadas ao longo do tempo e sem uma oposição consistente, acabam por “mutacionar” normas constitucionais.

Se deixar, a coisa pega.

Parece muito claro que o Senado acaba de manifestar sua legítima oposição.

Sem dúvidas, a banalização de decisões monocráticas, que suspendem leis com eficácia erga omnes, representa mais um exemplo de costume inconstitucional. Ou um costume à Jellinek.

2. O Juiz Natural das medidas cautelares

Nas ações do controle concentrado de constitucionalidade, a liminar é uma tutela provisória de urgência. Ao contrário do que ocorre no Direito Processual Civil, a doutrina e a jurisprudência do STF têm empregado indistintamente os termos “liminar”e “cautelar”, vale dizer, ambos têm sido tratados como sinônimos pelo Direito Processual Constitucional.

Diz a Constituição Federal que compete ao STF, não a Ministro do STF, processar e julgar os pedidos de medidas cautelares (art. 102, I, “p”, CF/88). Aliás, o texto constitucional, que a todos submete, avança para estabelecer que as declarações de inconstitucionalidade exigem a maioria absoluta do Pleno ou do órgão especial (art. 97).  Mesmo assim, a regra passou a ser a de que, presentes 8 (oito) Ministros, a liminar pode ser concedida por 6 (seis) deles (arts. 10 e 22, Lei n.º 9.868/99). Frise-se: liminares, em princípio, são decisões colegiadas. A colegialidade se impõe porque os efeitos da decisão suspendem a eficácia de uma lei elaborada por mandatários do povo brasileiro. A exceção deveria estar circunscrita ao período de recesso, quando liminares poderiam ser concedidas monocraticamente pelo Presidente do Tribunal, ad referendum do Pleno (art. 10, Lei n.º 9868/99 e art. 13, VIII, RISTF).

Não é o que se observa na prática, todos sabemos.

O Supremo Tribunal Federal apegou-se ao art. 21, incisos IV e V do seu Regimento Interno, que estatuem:

Art. 21, RISTF. São atribuições do Relator: […] IV – submeter ao Plenário ou à Turma, nos processos da competência respectiva, medidas cautelares necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação, ou ainda destinadas a garantir a eficácia da ulterior decisão da causa; V – determinar, em caso de urgência, as medidas do inciso anterior, ad referendum do Plenário ou da Turma;

À primeira vista, essa seria uma norma regimental que, harmônica ou não com a Constituição de 1988, permitiria que cautelares fossem deferidas pelo Relator, ou seja, monocraticamente. Mas uma análise mais cuidadosa demonstra que o texto se refere a um provimento acautelatório de direitos concretamente vindicados em juízo. É o que se extrai do fragmento “[.] necessárias à proteção de direito suscetível de grave dano de incerta reparação”, ou seja, a norma se aproxima das tutelas provisórias em casos típicos de controle difuso, quando instaura-se um processo subjetivo, com partes e com lide no sentido carneluttiano.

Diferente é o controle abstrato (ADIn, ADC e ADPF), que se instaura por processo objetivo, sem partes, não havendo direito subjetivo que possa periclitar. A chave da abóbada está na leitura dos demais dispositivos do Regimento Interno, que, como diria Eros Grau, não se lê em tiras.

O mesmo Regimento Interno do STF é claro ao asseverar que compete ao Plenário processar e julgar o pedido de medida cautelar nas ações diretas, no artigo 5º, X1. Assim também no artigo 170, § 1º, que estabelece: “Se houver pedido de medida cautelar, o Relator submetê-la-á ao Plenário e somente após a decisão solicitará as informações” (destaques acrescidos).

Agora, sim. Estas são normas regimentais específicas. De maneira coesa, ambas estabelecem que o Juiz Natural para medidas cautelares é o Plenário. Goste-se ou não.

3. Conclusão

O STF generalizou a monocratização de liminares, até o dia em que a prática veio a ser chancelada pelo próprio tribunal. Na ADI-MC 4638 e com base no art. 21, V, do seu Regimento Interno, o Supremo admitiu que liminares monocráticas fossem deferidas pelo Relator, inclusive fora do período de recesso, em caráter excepcional.

Claro que isso pouco importa.

Não interessa muito o que os tribunais fazem; interessa aquilo que eles deveriam fazer.

Como se vê, a PEC 8/21 elimina uma mutação constitucional à Jellinek. Tecnicamente, a consolidação de uma prática deturpada, que contraria a Constituição, não a convalida. Bem analisadas as coisas, a PEC reafirma aquilo que o texto constitucional, originariamente, já afirma. E não há norma constitucional, originária, inconstitucional.

Guardar a Constituição é obedecer a um significado anterior, superior e exterior aos juízes.

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1 A redação regimental requer uma leitura atualizadora, porque ainda se refere às representações intentadas pelo(a) PGR. Como se sabe, a latitude dos legitimados para a sindicância de constitucionalidade foi ampliada pela CF/88. Eis o seu teor: “Art. 5º. Compete ao Plena’rio processar e julgar originariamente: [.] X – o pedido de medida cautelar nas representac¸o~es oferecidas pelo Procurador-Geral da Repu’blica;”.

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HESSE, Konrad. Temas Fundamentais do Direito Constitucional. Textos Selecionados e Traduzidos por Carlos dos Santos Almeida, Gilmar Ferreira Mendes e Inocêncio Mártires Coelho. São Paulo: Saraiva, 2009.


Texto retirado do link: https://www.migalhas.com.br/coluna/olhar-constitucional/397532/cautelares-monocraticas-do-stf-uma-mutacao-a-jellinek

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