O jornal Gazeta do Povo publicou nesta quarta-feira (9) o artigo “Os papéis do Congresso Nacional e STF na pandemia e o contraste com o Executivo”, escrito pelo Presidente do UniBrasil e sócio-fundador do escritório, Clèmerson Merlin Clève. Leia o artigo na íntegra aqui em nosso site:
Os papéis do Congresso Nacional e STF na pandemia e o contraste com o Executivo
Clèmerson Merlin Clève
Professor Titular Doutor das Faculdades de Direito da UFPR e do UniBrasil
O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) estão sendo avaliados pela sociedade brasileira a partir de severo escrutínio. Importa reconhecer, todavia, que os trabalhos do Congresso e do STF têm sido fundamentais para a defesa da normatividade constitucional neste período crítico.
Vejamos primeiro o papel funcional e de controle do Congresso Nacional, que aprovou: a Lei 13.979/2020 que dispõe sobre o enfrentamento da pandemia, autorizando medidas sanitárias para a proteção emergencial do direito à saúde previsto do artigo 196 da Constituição Federal. Além disso, partir de anteprojeto elaborado por comissão sob a presidência do ministro Dias Toffoli e seguindo os exemplos dos EUA, Alemanha e Reino Unido, a Lei 14.010 foi criada para tratar das relações privadas sob a pandemia. Houve ainda a Emenda Constitucional 106/2020 disciplinando o orçamento de guerra e a Emenda Constitucional 107/2020, autorizando o adiamento das eleições municipais (para os dias 15 e 29 de novembro), iniciativa negociada com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), os partidos políticos e a sociedade civil. Por fim, tivemos a Lei Complementar 173, de 27 de maio de 2020, criando o programa federativo de enfrentamento ao novo coronavírus, alterando a Lei Complementar 101/2000 e contemplando recursos para os estados, o Distrito Federal e para os municípios.
O Poder Legislativo, entre nós, é complicado, claudicante e pouco transparente, o que compromete a sua credibilidade, mas ninguém pode negar que, no contexto em comento, ele trabalhou com a responsabilidade e velocidade que a gravidade do caso impõe. O Congresso Nacional, além disso, tem introduzido na ordem jurídica outras providências e atuado como uma caixa de ressonância dos interesses da sociedade na defesa da democracia, da segurança e da saúde pública. Cumpre lembrar, nesta altura, que as medidas mais generosas de apoio à sociedade civil partem do Congresso Nacional e não do Executivo Federal.
O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, está consciente da gravidade dos problemas pelos quais o país vai passando. Vê-se, inclusive, que nos períodos mais sensíveis, a divisão da Corte deu origem a uma atuação concertada dos ministros. Neste quadro, um novo Supremo Tribunal Federal, mais unido, convergente, apareceu durante a pandemia.
Os manuais de direito constitucional apontam, com esta ou aquela diferença, as funções da Egrégia Corte. Para simplificar o debate, cabe apontar as seguintes: (i) proteger o pacto federativo, (ii) garantir a efetividade da normatividade constitucional e (iii) atuar como instância contramajoritária. Ora, a Corte, sensível às exigências do momento, tem, de modo sensato, exercido as três funções. Para confirmar a tese, alguns casos podem ser relembrados: A ADI 6357, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, autorizou o poder público, a partir de uma inédita interpretação conforme de dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, a fazer gastos não previstos no orçamento. A ADPF 672, que também teve Moraes como relator, reconheceu a competência concorrente para a edição das medidas administrativas necessárias para o combate à pandemia, retirando, assim, o papel centralizador e unificado da União.
A ADPF 635, que teve o ministro Edson Fachin na relatoria, foi deferida liminar proibindo as operações da polícia militar em favelas do Rio de Janeiro, preservando muitas vidas, particularmente de pessoas jovens, pobres e negras. E, ainda nas ADPFs 669 e 668, foi concedida liminar pelo ministro Barroso proibindo a campanha publicitária “O Brasil não pode parar”, por levar mensagem não condizente com a gravidade da pandemia. Esta decisão, também, salvou muitas vidas.
Fica, então, a pergunta. Por que, apesar da atuação dos Estados, Municípios, do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, chegamos a estes números alarmantes de infectados e mortes?
A resposta é simples. Faltou gestão adequada da situação, diante do aparelhamento e sucateamento do Ministério da Saúde e, sobretudo, em função da falta uma liderança nacional capaz de, presidindo a União, reunir, num gabinete de crise, as autoridades das unidades federadas para o acompanhamento da situação e adoção de iniciativas coordenadas (federalismo de cooperação e não de colisão) para o seu enfrentamento. O jogo do presidente era oito ou oitenta. Queria o comando centralizado e exclusivo da crise para orientar uma política negacionista de retorno ao trabalho. Com a decisão do Supremo Tribunal Federal encontrou uma desculpa para não cooperar, omitir-se de vez, e culpar estados e municípios pelos números alarmantes de vitimados aos quais chegamos.
A ironia é que com tantas mortes, do ponto de vista jurídico, repito, não estamos nos saindo tão mal. Fizemos e temos feito, na medida do possível, o que precisa ser feito. Todavia, pela falta de coordenação, pela omissão ou mau exemplo do presidente da república, pela timidez do Ministério da Saúde cujo ministro foi trocado duas vezes durante os primeiros meses do período pandêmico e hoje continua sem titular, o povo padece, tendo o país chegado a uma situação mais grave do que a gravidade da pandemia poderia indicar.
Se fomos exitosos na defesa da Constituição para preservar a democracia, não temos conseguido proteger a Lei Fundamental quando se cuida de garantir integralmente o direito fundamental à saúde dos brasileiros (Art. 196 da CF). O quadro normativo necessário para o combate à pandemia foi aprovado pelo Congresso Nacional dentro dos ditames constitucionais; o STF tem agido adequadamente para dar, dentro das balizas jurídicas, a segurança necessária para os agentes e autoridades e, também, para controlar a proporcionalidade e razoabilidade dos programas administrativos. O problema é o Executivo Federal que se omite e dá mau exemplo com a reiterada conduta do presidente e, ademais, culpando os outros poderes e coletividades políticas pelo quadro desolador de mortes evitáveis, deixando de cumprir um papel de liderança para a coordenação necessária reclamada por esse tipo de autoridade para o enfrentamento da pandemia.