3° colocado no Concurso de Contos: Do lado de lá

   Pra muita gente a ideia de não ter vizinho soaria uma benção. E não ter vizinho seria a própria benção. Eu também já pensei assim. Vizinho estaciona carro na nossa guia, empesteia a casa da gente com cheiro de churrasco e discute com a família na madrugada de modo que dos problemas dele a gente só não é mais conhecedor que padre, melhor amigo ou psicólogo. 

               Vizinho constrói casa de mau gosto, com direito a cascata, estátua da Branca de Neve & Sete Anões e, assim, desvaloriza o entorno de modo que, no fundo, qualquer esforço de chiqueza que a gente tenha ao plantar uma bougainville de fazer varrer dia-a-dia a calçada é quase sempre à toa. Isso pra falar de vizinho assim, de rua, de terreno. Porque se for pra entrar no mérito do que é ter vizinho em prédio, é provável que nem falássemos do vizinho da frente ou do lado, mas daquele de cima mesmo; arrastando móveis, a descarga na nossa cabeça – a imagem da merda correndo por dentro da nossa parede de cabeceira -; a moça com chinelo de salto (com pluminha, será?), ou daquele vizinho de baixo, o latido do cachorro dele e a fumaça do cigarro subindo todos os dias.

               Foi bem quando eu tava aqui, na varanda da frente fumando meu cigarro – depois do almoço é de lei – que cheguei à conclusão de que pra muita gente não ter vizinho seria uma benção. Eu também já pensei assim. Mas hoje para mim não ter vizinho é uma tristeza grande.

               Bem, primeiro quero dizer que quando digo “varanda da frente” falo de uma varanda térrea, funda, bem defronte da residência. Não é nem a varanda da Rapunzel nem aquele rol (ou será que é hall?) de entrada justíssimo que fica a um passo pra dentro da porta. Varanda é aquele lugar depois do portão (de quem olha lá de fora), de onde os velhos olham para a rua. Herdei essa casa do meu avô, construída por ele mesmo nos tempos em que tudo por aqui eram chacrinhas longe do centro.

                Lembro dele sentado na cadeira de balanço (essa ninguém sabe que fim levou), enquanto olhava para os passantes do caminho de chão e para o mato em frente – de vez em quando um esquilo saltava de árvore em árvore. Um casal de tucanos apareceu uma vez, raridade! Pensando naquele tempo, hoje – sentada na mureta dura de doer a bunda e fumando meu cigarro – foi quando bateu uma tristeza de ver o muro em frente, essa muralha da China – e uma tristeza maior ainda de não ter vizinho. Tenho vizinho dos dois lados, vários inclusive, que essas sobradeiras grudadas cê sabe, apertam um monte de casinhas num terreno comprido… Mas isso tudo, pode achar frescura minha, não diminui a minha tristeza de não ter vizinho de frente. É uma ausência…

               A casa lá pra dentro do muro (tenho especial implicância com a que fica frente à frente com minha casa) me ignora. Pior do que abortar, desconsidera a existência da minha residência. Daqui só enxergo o topetinho cinza dela. Porque a casa detrás do mundo tá lá no fundo do terreno (de quem olha aqui de fora). Virada de costas para o ponto de ônibus, para o lixo que se acumula no meio fio, para a poda das árvores, para os escândalos do bairro. Como se a rua fosse um contaminante. Como se – feito essas moças ricas e debochadas – me dissesse que por maior possa ser minha raiva, não adianta gritar xingamentos, porque nem toda força do meu braço faria uma bituca minha cruzar muro tão alto. E, se fizesse, ela cairia sobre o telhado da churrasqueira, no máximo sobre a grama e o jardineiro recolheria. Fazer aumentar trabalho para o jardineiro é que é bem pior. Ainda mais se for Seu Jodemir que mora três ruas ali pra trás e que dá expediente no dito cujo do condomínio.

                Aliás quando eu digo condomínio não é polidez de ocultar o nome não, nem é medo de apontar qual e tomar processo nas costas… É só que a portaria dele tá tão pra lá, no final da subida da rua do lado, que não me lembro o nome e tanto tempo que faz que eu não vejo. O Seu Jodemir subindo aquela ladeira todo dia nem precisa de outro exercício. O defeito no pé, resultado de um prego que a mãe dele não levou no médico de pequeno, nunca impediu as pedaladas. Ecológico antes da modinha, sabe? Necessidade mesmo. Enquanto as crianças aqui de casa andam de bicicleta só por gosto aos domingos (que a gente tem carro, uma Parati, mas tem), as meninas do condomínio pegam a calóizinha de segunda a sexta pra pedalar na porta de casa. É estranho que lá dentro isso seja seguro e ninguém corra o risco de ser atropelado, porque são umas 80 casas (talvez seu Jodemir tenha aumentado um pouco), também passa carro, caminhão… Mas ninguém tem medo. Será que a gente ficou cercado para o lado de fora?

               Essa angústia minha ameniza um pouco quando no café da tarde tem bolo e sonho. O sonho do carro do sonho, o bolo feito com o ovo do carro do ovo. Para de um tudo aqui na porta. Às vezes quando vou pra rua e compro ovo, verdura, três de doce de leite e um de goiabada pra minha mãe, olho para o muro e fico pensando se aquela gente não quer sonho. E ofereço espécie de pensamento como por educação o sonho que eles, se ouvissem chamar, pudessem desejar compartilhar com a gente. Mas se na certa que escutam a música, ainda que um som longe… o Cadette passa tão lento, será que o caso então é que simplesmente não desejam? O  sonho é maravilhoso, eu acho, mas às vezes até chego a desconfiar se não é lá tão bom assim. Porque essa gente do condomínio deve ter motivo pra fabricar os próprios sonhos ou trazê-los sabe-se lá de qual lugar mais longe.

               Fico pensando que um dia todos eles vão abrir garagem pro lado de fora. Que vai ser moda uma entrada individual com guarita própria. Talvez a gente não se converse do mesmo jeito, mas vai dar pra tentar saber melhor as coisas. Quantas pessoas por casa, placa do carro, guardanapo de padaria jogado pela janela e quando tá muito quieto, ah! pode contar que saiu todo mundo de férias!

               Quem sabe um abano, se por razão um vidro abaixado, num dia de calor… Mas depois do ar condicionado talvez num de frio? Numa descida do vidro embaçado, abaixado pra limpar, sabe? Aquele abaixa e levanta rapidinho quando a pressa é mais rápida que o ar quente. Isso quando pegassem confiança na gente. Ou a gente neles. Não sei.

               É muito triste isso de não ter vizinho, não vou me conformar nunca. São três metros de muro, grades, em cima das grades bolas e mais bolas de arame farpado, como se quisesse o muro, apoiado no barranco, ser desses malabaristas que aguentam mais três de pé em cima dos ombros, equilibrando os corpos num balança-mas-não-cai.

               Será que o muro um dia cai? Não digo pelo peso todo, digo mesmo pelas rachaduras que parecem um caminho aberto na aspereza do reboco. Tem uma brecha antiga que se confunde com um ramo de árvore seca no inverno. Esse ano parece estar mais largo o ipê, seus galhos e o galho postiço. Tem um ipê ao lado do ponto de ônibus, eu disse?

               Seu Jodemir, que também faz bico de pedreiro, disse que um dia o muro tomba, tá condenado, mas nesse dia, claro, todos vão dizer que não faziam ideia dos problemas estruturais, do risco todo, da iminência. 

               A dúvida é se em caindo ele tomba pro lado de dentro ou de fora. Torço pra tombar pro lado de dentro. Do lado de fora tem criança no ponto, tem pedestre, tem Seu Jodemir de bicicleta, vira-lata tomando banho de sol – e tem a gente. Do lado de dentro tem gente também, é verdade, mas uma gente que a gente nunca viu, sabe?

Andressa Barrichello, pseudônimo Coralina.

 

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